dezembro 28, 2021

Pra Super Herois e Cultura Pop em Geral, Conhecimento é Sinônimo de Fraqueza

 Eu não lembro das palavras exatas, mas era algo no sentido de “muito estudo e dedicação”. Estou falando do primeiro filme do dr. Estranho. Benedict Cumberbatch estava querendo saber como se tornar um feiticeiro e Mordo pergunta a ele como ele se tornou um respeitado cirurgião e o Strange responde, “com  muito estudo e dedicação”. Mordo ri e diz que terá que ser da mesma forma.


Esse é um dos meus momentos favoritos dos filmes da Marvel. Resume o espírito ligeiramente subversivo desse universo cinematográfico, honrando a tradição dos quadrinhos do Stan Lee. A subversão é que Stephen Strange irá se tornar o Mago Supremo da Terra não porque os deuses decidiram que seria divertido dar poderes de nascença praquele sujeito, mas porque o vivente vai meter a cara nos livros e tomar muita porrada (metafórica) até aprender como essa coisa de magia funciona.


Pode parecer pouca coisa, mas perto do universo fascista do Zach Snyder e da DC, onde todo o mundo já vem com superpoderes de fábrica e, preferivelmente, de uma família real, é um tremendo adianto. E não adianta lembrar do Batman, porque, como ele mesmo explica na versão de cinema de “Liga da Justiça”, seu superpoder é ser rico. Também posso parecer apenas um nerd discutindo detalhes de universos fictícios que deveria estar em algum vocetubo de jovens virgens cavaleiros templários, mas é um assunto que merece mais atençaõ do que recebe, porque essa cultura pop é que alimentou nas últimas décadas esses mitos neocons, neoliberais, misóginos, anticientíficos, a ponto de um então Ministro da Justiça e hoje candidato a presidente tenta vender uma lei dando ainda mais poderes a policiais afirmando que vai criar agentes como os de filmes policiais americanos (aqueles extremamente realistas).


Stephen Strange tendo que meter a cara nos livros pra passar nos exames vai soar pra muita gente a glorificação da meritocracia utópica dos neoliberais, o que não é verdade porque, em primeiro lugar, está muito mais pra utopia socialista de igualdade de oportunidades e, em segundo lugar, porque os conservadores odeiam a ideia de meritocracia. 


Desde que Alec Guinness contou pro Luke Skywalker que o pai dele era na verdade um cavaleiro jedi (e o avô dele era literalmente um Espírito Santo) e que, por isso, ele deveria derrubar o Imperador, a fantasia do sujeito que, apesar de parecer um mané perdedor, secretamente é o filho-herdeiro-avatar de alguém, destinado a ser o fodão do Universo, tomou as telas, as telinhas, as páginas da cultura de massa e as mentes e almas da imensa maioria da humanidade que se enquadra nessa descrição (mané perdedor, não fodão do Universo). 


Stephen Strange entra para o templo de Vishanti, Hoggoth, Stanlee ou seja lá o que for e seu círculo de amizades, dinheiro e acesso a conhecimento não lhe vão valer de nada. É claro que o conhecimento geral que ele traz de sua vida luxuriante pregressa faria diferença, mas aí estamos entrando em muita sutileza para narrativas mitológicas pop.  Ainda mais que, para compensar, o povo que escreveu a historinha ainda perde um tempinho pra dizer que nem existem vantagens genéticas de maior agilidade ou destreza. Quando o Estranho reclama que não consegue gesticular magicamente (não hipnoticamente, fãs de Mandrake!) porque o acidente de carro que motiva o filme deixou suas mãos e seus dedos inábeis, é revelado que um dos talentosos feiticeiros da área nem dedos tem. Enquanto isso, o maior fenômeno pop deste século, Harry Potter, igualmente ancorado em magia, é um mané perdedor até que, um dia, alguém aparece e diz que ele, secretamente, é filho de um casal de magos e tem poderes que… não posso falar muito por nunca ter lido ou visto Harry Potter (e isso não é motivo de orgulho, embora também não seja de opróbrio), mas vocês já entenderam como a coisa segue.


A meritocracia pregada pelo neoliberalismo e neoconservadorismo é a do Harry Potter, não a do dr. Estranho. Ela não existe para recompensar estudo e dedicação, mas para garantir que aqueles nascidos “especiais” recebam seu quinhão de direito e sua posição superior a dos outros reles mortais. Seus talentos vêm de nascença. Não é por coincidência que essas ideologias neorreaças venham do mesmo berço daquele protestantismo que pregava que Deus já escolheu aqueles que receberão a salvação. Para o pensamento conservador, a presença dos sujeitos esforçados em meio aos titãs “escolhidos” é quase uma ofensa. Pensando em termos de seleção brasileira, comparem o ódio que o esplêndido Dunga, multicampeão, desperta, enquanto o multifracassado (repito, em termos de seleção) Neymar é o ídolo das multidões. Coisas como conhecimento são totalmente inúteis frente à férrea vontade do Predestinado. Quantas fitas você já não assistiu em que os cientistas - aqueles caboclos - ou cabrochas - com décadas envolvidos em pesquisas e leituras - insistem em que alguma coisa é impossível pra chegar o herói e fazer o impensável a que se propôs apenas por sua vontade férrea, fé, ou pelo poder do amor ou algo parecido>


Assim se cria o pensamento anticientífico. Esse povo todo foi treinado desde antes de saber que pensava, logo existia, a crer que opiniões e ideias de pessoas especiais têm total procedência sobre sábios. Os nerds de hoje, então, nem precisam estudar, pois, como vimos, você só precisa saber que é especial. E é claro que você é, com toda sua bagagem cultural e conhecimento de literatura e cinema. Literatura de fantasia  e cinema de super-herói, mas, ei, isso é arte! Você que diz o contrário, aposto que é um desses cientistas que está sempre errado.


Uma ou duas gerações atraś, depois de uma certa idade o que você tinha à disposição de universos fictícios coerentes era destinada a gente com menos de 20 anos, como as HQs da Marvel, ou escassa, como Star Trek. Até uma certa época você nem  encontrava Duna em português. Muito menos Elric de Melniboné (a fantasia que é a antifantasia conservadora tradicional). Então, depois que você ficava viciado em leitura, começava a buscar obras mais complexas. No mundo de hoje em dia os “especiais” podem se perder em infindáveis fantasias exaltando a falta de esforço. Antigamente, nas aventuras espaciais infantojuvenis de Isaac Asimov (ele tinha as adultas também), quem mandava no planeta era o Conselho de Ciências. Os heróis eram cientistas (tradição herdada por Star Trek, onde ser um estudioso não exclui ser um homem de ação). Já hoje em dia eles são os intrusos, tentando se intrometer  entre os superiores predestinados. Que podem  parecer apenas ser uns manés fracassados, mas que estão apenas esperando ser reconhecidos como  os cavaleiros templários de direito que são.


E assim a humanidade caminha. No último Homem-Aranha do cinema, e estou contando uma revelação da fita aqui, o Ned, o melhor amigo do Amigão da Vizinhança, descobre  que, usando o anel do dr. Estranho, consegue abrir portais e manipular magia.  Nada de estudo e dedicação. Ele é um escolhido. Um predestinado. Curiosamente Ned era um  nerd (aliteração!!) que já ajudava o herói com  seus conhecimentos tecnológicos e de informática. Mas, aparentemente, na Marvel de agora, isso não é o bastante para ser amigo de um dos homens superiores desse universo. É preciso ter nascido com seus próprios superpoderes, ou você não é nada, é um alpinista social e genético. Aparentemente mesmo os tímidos conceitos subversivos da Marvel estão sendo limados. Stan Lee deve estar se revirando em seu túmulo.

dezembro 07, 2021

Bond, o Subversivo parte 1

 Na postagem que fiz sobre o Sérgio Moro, afirmei que James Bond, quando apareceu no cinema, era um personagem subversivo. Como o capanga pessoal da Rainha da Inglaterra, servo do mais clássico império colonial europeu, machista comedor  e misógino pode ser subversivo? O homem é um ícone conservador, um fascista com um charme arrebatador, mas um fascista claramente racista. Como assim ele era subversivo?


O Satânico dr. No deve ter batido nas telas com um impacto impressionante. Levado pelo meu pai pra assistir, num festival no velho Coral/Scala, 13 anos depois, me foi um  choque. Naquela época mocinhos cínicos e sexualmente ativos eram Censura 18 anos - e essas coisas não passavam na tevê, pelo menos não num horário assistível para moleques de 10, 11 anos. Ver o mocinho (!!!) calmamente levar pra cama uma vilã (nem um pouco disposta, mas precisando fazê-lo pra manter o plano), imediatamente em seguida pô-la na mão da polícia, armar uma isca para um assassino e aguardá-lo jogando paciência (e tomando uma vodka) e, finalmente, enroscar o silenciador e explicar para o sujeito que ele descarregou a arma  enquanto o enche de tiros foi a realização de velhas fantasias infantis que os filmes nunca levavam até o final. Por boas razões, inclusive, já que isso acabaria levando à cultura pop exaltando o vigilantismo, de Dirty Harry às infindáveis séries policiais em que o herói não  pode agir por motivos políticos, legais ou similares.


A misoginia de Bond também faz hora extra na cena de cama com a cúmplice do assassino. A vilã não está com a menor disposição, mas precisa prosseguir para manter a armadilha para 007. Não parece nem um pouco provável que, nesse clima, o sexo tenha sido bom. Mas James deve ter curtido de montão. Seu objetivo é humilhá-la. Puni-la. É um estupro. Um jogo de poder. E, para adicionar racismo à injúria, ela é a única das amantes do agente secreto que não é branca.


Mas, se a mulher for caucasiana, James Bond está disposto a celebrar sexo por prazer e, neste ponto, já é bem mais subversivo do que todo o cinema americano, onde os casais casados ainda precisavam dormir em camas separadas. Naquela minha apresentação a 007 no Coral/Scala, quando ele ganha um jogo de cartas de altas apostas de uma mulher sexy e misteriosa, só para encontrá-la nua (ok, com uma camisa masculina e salto) em seu quarto em seguida, eu REALMENTE comentei com meu pai, “será que ele não percebe que ela é uma espiã?” E eis que ela NÃO era, supõe-se que tenham tido bom sexo e nunca mais ouvimos falar dela. Aliás, não, Sylvia Trench reaparece em “Moscou contra 007”.


Eu mesmo nunca reparei que a mulher com quem Bond está fazendo um piquenique no começo da segunda fita é a mesma Sylvia Trench. Tudo bem que os criadores não puderam deixar de comentar que ela ficou excitada por ter sido derrotada pelo 007, mas a verdade é que ela é uma mulher independente - inclusive financeiramente -, que frequenta aristocráticos clubes ingleses e que dá pra quem quiser. E sem compromisso. Depois de Moscou contra 007, ela some de vez, mas não deixava de ser, na época, relevante que uma bela mulher tomasse a iniciativa de um relacionamento basicamente sexual, sem ser punida, assassinada ou revelada como espião.


Mas não é essa a subversão à qual eu estava me referindo quando escrevi sobre o Moro. É outra, referente a jogos de poder e posição na sociedade. Mas fica pra próxima postagem.

dezembro 06, 2021

Moro num País Tropical

 Como era óbvio e previsível desde que apareceu nos noticiários, Sérgio Moro apareceu como candidato à presidência. Ninguém ganha uma capa “ele salvou o ano” de uma Veja em sua época ainda relevante em vão. Mais uma vez vão tentar empurrar um messias sem laços com a política tradicional. Pouco importa que ele tenha sido Ministro da Justiça ou que ele seja reconhecidamente um  juiz venal, parcial, que assumiu uma posição politizada num processo que teve que ser anulado por causa disso. A fantasia de imparcialidade cultivada pelos conservadores continua. Em seu provincianismo, essa é a única maneira de se conseguir fazer alguma coisa nesse país. O próprio Provinciano do Paraná esclareceu como funciona esse raciocínio, quando vendeu seu “projeto anticrime” explicando que os policiais poderiam agir como agentes de seriado americano. Esta é a referência, não só de seu público, como dele mesmo. Cultura pop americana. Esse é o preço que se paga pelo conservadorismo provinciano. O pessimismo cínico do pensamento literal e encarquilhado.


Presses pensadores conservadores que gostam de despejar silogismos que nunca passaram perto da teoria dos conjuntos e baseados em fatos altamente questionáveis, o pensamento “comunista” - aí englobados os progressistas, reformistas e liberais - é inerentemente pessimista e agressivo. Nunca estão satisfeitos com nada, não reconhecem valores consagrados pelo tempo e reclamam de tudo. Na verdade, é o contrário. Os cínicos e pessimistas são os conservadores, que não conseguem imaginar que tudo possa melhorar e temem desesperadamente que qualquer movimento faça tudo desabar. Em suma, além do pessimismo, a falta de imaginação também é especialidade da casa. 


Assim, não é à toa que conservadores temem tanto ensino de ciências humanas. A imaginação no poder é o seu grande temor. Sem ela - e com o pessimismo implícito dessa visão de mundo sem opções, só sobra cuidar de si mesmo. E é assim que o egoísmo - a verdadeira raiz de todos os males - não só é cultivado como estimulado - e como MOTOR da sociedade! O pensamento literal é incapaz de compreender que o egoísmo sem limites, por sua própria definição, não pode arrastar junto todo o mundo. Mas esse é um mundo mais simples e compreensível para um raciocínio mais limitado. Ainda vem com o bônus de alavancar os valores familiares tão estimados. Num cenário de cada um por si, em quem mais você pode confiar, além de sua família? Com reservas, é claro. Vamos deixar a discussão de como essa estreiteza de confiança justifica a homofobia (não produzem descendentes confiáveis) e misoginia (mulheres que compram os valores egoístas não se dedicam tanto à criação dos importantíssimos filhos). O papo aqui é o juiz venal vendido como campeão anticorrupção.


Esse egoísmo estrutural não compreende a política tradicional. Conciliação é a essência da vida em sociedade. Mas quando quem não está com você está contra você, a demanda é por messias (qual o plural de messias?). Salvadores imparciais, destituidos de egoísmo e dispostos a quebrar as regras e os limites para consertar as coisas. Porque se este é o melhor dos mundos, é claro que o problema é conjuntural. É só tirar algumas maçãs podres. E quem são as maçãs podres? 


Ora, num mundo apeado em egoísmo e falta de imaginação, é claro que o supremo problema é o atentado contra a propriedade. Tudo se resume a roubo. Parando o roubo, tudo vai ficar bem. E o “roubo” não pode ser do tipo metafórico. Tem que ser, novamente, literal. Ou é um bandido assaltante ou é a corrupção.


A corrupção, é claro, é algum político pedindo propina. A ideia de que ela existe em praticamente todo momento de relações humanas - do bullying à paquera - parece elusivo demais. A ideia de que divulgar conversas gravadas - cuja gravação já seria de pronto proibida - em processos sigilosos NÃO é corrupção pode ser empurrada facilmente porque não houve propriedade privada envolvida. Direitos são entidades etéreas e abstratas, ao contrário de coisas como anjos da guarda.


Sérgio Moro é o anjo da guarda paternal e imparcial. Com o rosto quadrado como um apresentador de telejornal ou super-herói desenhado nos anos 30, tem o físico do rolo, como o pessoal do Pasquim gostava de dizer. Moro se expressa pessimamente e com constantes clichês jurídicos. O que é ainda melhor, depois de décadas de condicionamento pela cultura pop de que pessoas com gostos refinados são vilões pervertidos (e, neste sentido, James Bond foi um personagem subversivo - até Daniel Craig aparecer como um bruto sem o característico elitismo). Sérgio Moro não é um suspeito gênio da retórica - mas olha como usa palavras difíceis. Ele é o  tipo de inteligente confiável.


É assim que se justifica a corrupção. Ele não está avançando sobre a propriedade privada de ninguém, o grande temor conservador. Esse é o custo do pensamento literal e provinciano - o culto ao vigilantismo. Em 2011 viajei pelo Caribe. Logo ao chegar, o povo de lá, ao saber que eu era brasileiro e viera pela Copa, comentou que essa linha havia acabado de adquirir os novos Embraer - muito melhores que os jatos norte-americanos anteriores. Tinham até DVD em cada cadeira (novidade na época, ainda mais em aviões para rotas médias). Todo o mundo queria saber notícias do câncer de garganta do Lula, fato recente então. Os países estavam sendo postos abaixo e reconstruídos - estradas, cassinos, hotéis, resorts, metrôs… tudo construído pela Odebrecht. Para os haitianos, Lula tinha sido “o melhor presidente da história da América Latina”. No Panamá, um dos mais famosos cartões postais, os ônibus ex-escolares americanos, estavam sendo substituídos por veículos brasileiros. O interesse que eu despertava fazia-me sentir um cidadão do verdadeiro primeiro mundo.


No ano seguinte subitamente começaram os golpes - alguns parlamentares, outros literais - contra todos os líderes não-conservadores latinoamericanos. No Brasil, um juiz que fez um curso nos EUA destruiu a Odebrecht e apeou do poder o partido que tanto espalhou a influência brasileira pela região - e pelo mundo, a ponto de nos darem uma Copa e uma Olimpíada. A Embraer foi comprada pela Boeing, embora a parte de melar tudo depois que metade dos funcionários foi demitida não fizesse parte do plano, foi apenas culpa dos 737 caindo frequentemente. Outro motivo pelo qual a Copa fez bem em comprar Embraers. Esse é o famoso soft power. Não rende dinheiro imediatamente. Na verdade, perde-se, a princípio. É um movimento para o futuro. Mas no universo egoísta e patrimonial, é perda de tempo. É preciso o meu agora. É preciso acabar com o roubo e gastar meu dinheiro com esses subdesenvolvidos é corrupção. É preciso eleger alguém acima do bem e do mal e sem envolvimento com a política tradicional. É preciso trazer o juiz corrupto. Ele é do bem. Afinal de contas, a Globo não passava aquele seriado sobre um juiz que saía à noite pra caçar os bandidos que ele não conseguia condenar?


E, assim, temos a mediocridade galopante. O egoísmo alimentando o provincianismo alimentando o egoísmo e a desigualdade. Que alimenta a corrupção e o egoísmo. A falta de imaginação nos impede de pensar em algo mais do que ser um país periférico, desde que nós possamos manter nossa identidade de classe média cosmopolita. Mesmo que esse cosmopolitismo seja frequentar um shopping center em Miami e voltar sem fazer nenhuma amizade. Sérgio Moro é obviamente o candidato da terceira via. É o candidato da falta de opção.






novembro 20, 2021

Viva o Pensamento Renascentista

 Tem um conto do Isaac Asimov, agora eu esqueci qual, sobre um mundo onde as crianças aos 7 anos entram numa máquina que baixa instruções pra cabeça delas e elas saem sabendo ler. Ninguém vai pra escola. Aos 20 anos, a garotada – presumivelmente depois de passar a adolescência toda chapada, imersa em sexo e álcool – volta mais uma vez pro mesmo lugar, dessa vez pra se ligarem numa engenhoca que vai analisar as sinapses e os neurônios dos viventes, decidir pra qual carreira a mente deles é desenhada e eles receberem um daunloude do curso pro qual foram designados.

O protagonista sonha em ser, se não me engano, algum tipo de engenheiro eletrônico, físico ou inventor (ou então “cientista”, naquela vaga definição que envolvem Reed Richards e Peter Parker) e passou sua juventude lendo muitos livros sobre o assunto. No dia em que ele vai lá receber o curso na cabeça, os orientadores lhe explicam que ler sobre o que gostaria de fazer não influencia a máquina, só o que interessa é o que ela decidir. E olha só, apesar do nosso herói ter fama de muito inteligente e dedicado, a traquitana chega à conclusão que o cérebro dele não tem nenhuma aptidão específica pra nada. E a história começa justamente com ele numa Instituição, conversando com um interno veterano, que passa o tempo todo lendo. Aos poucos, isso tudo que contei nos dois primeiros parágrafos vai sendo narrado em flechebeque e, no final do primeiro ato, revela-se que a Instituição é uma “Casa para Débeis Mentais”.

O garoto em quem já investimos nossa simpatia resolve se rebelar e fugir da Casa, e após algumas peripécias, consegue uma entrevista com algumas autoridades, tentando vender a ideia de que as pessoas poderiam aprender por si próprias e assim evitar casos muito comuns em que engenheiros, por exemplo, não sabiam trabalhar com máquinas que tinham aparecido APÓS sua graduação e ficavam restritos a empregos que não a utilizassem. As autoridades rebatem a ideia, o rapaz tem um desmaio e, quando acorda, tudo está resolvido. 

Sim, ao despertar ele dá de cara com seu ex-companheiro de Casa, agora vestido como uma autoridade. Enquanto o garoto se recobrando, ele chegou à conclusão que essa inabilidade das pessoas de se adaptarem às novidades significava que ALGUÉM que não recebera seu conhecimento pelas máquinas era quem inventava esses aparelhos novos. As pessoas criativas. Os inventores e artistas. Aqueles cujo conhecimento e vontade de saber não se enquadram dentro de nenhum campo específico, saca? Mas não basta isso, é preciso também ter iniciativa e gana, por isso a história de internar na casa dos débeis mentais, pra ver se o sujeito se rebela e demonstra vontade de quebrar os paradigmas blablabla etc. Etc. “A maioria das pessoas está satisfeita com o que aprendeu e tem muito orgulho de andar por aí com o crachá exibindo sua profissão, como “cozinheiro registrado” ou “advogado registrado”, explica o antigo parceiro de instituição. O crachá era recebido no dia da Graduação. “Poucos são os que estão a fim de ir além”.

Mas e o que acontecia com quem não demonstrasse iniciativa? O sujeito que gostava de ler explica que estes se tornam os psicólogos, filósofos, sociólogos, antropólogos. Alguém tem que analisar as fitas de cursos, os avanços tecnológicos, as personalidades dos candidatos e desenhar os aprendizados e mesmo as orientações da sociedade. O ex-companheiro do protagonista era, por exemplo, um psicólogo. E assim acaba a história, com final feliz, como normalmente favorecido pelo Asimov (exceto por alguns contos do auge da Guerra Fria).

Lembrei dessa história por conta do nosso ex-ministro da Educação e do eleito, que já várias vezes disseram que brasileiro tem que aprender a ler, escrever e fazer conta e acabar essa história de se estudar Ciências Humanas (1). O problema é que ler e escrever não adianta de nada se a pessoa não conseguir interpretar texto e decorar tabuada não vai ter nenhuma utilidade no mundo das calculadoras se o vivente não souber como funciona uma operação aritmética. Poucas pessoas têm sequer ideia que elas envolvam Teoria dos Conjuntos. E que “lógica” também decorre dela. Sem essa compreensão, vivem num mundo de analogias – e, por consequência, falácias. 

A próxima digressão agora é sobre uma matéria que li outro dia, infelizmente agora não me lembro onde, sobre como entendemos errado a história de que na China os salários são baratos. A imagem de que no Império do Meio há um monte de operários trabalhando em suétechopes, ganhando duas mariolas por dia seria, segundo o articulista, completamente ultrapassada. Não só já não existem tantos trabalhadores miseráveis recebendo consideravelmente menos que os assínicos, como uma imensa parte desse tipo de labor atualmente é feita por robôs. As remunerações baratas que fazem valer a pena ter uma fábrica num lugar praonde a rota transpolar é mais curta seriam as dos sujeitos formados com títulos universitários, como os engenheiros, analistas de sistemas, programadores. Isso porque na América, com os custos das universidades decentes em centenas de milhares de dólares, os ordenados desse povo, ainda que abaixo do que os pais recebiam, é bem acima daqueles dos chineses educados em faculdades estatais comunistas.

Mas o mais surpreendente é que o uso desses sujeitos formados não é pra novos desenvolvimentos. O uso desses universitários é basicamente técnico. Seus títulos na verdade os credenciam a ser os gerentes, supervisores, ou até mesmo os zeladores das linhas de produção. São os viventes que vão fazer os ajustes nas máquinas, na engenharia da produção, dinamizar o throughput, flexibilizar a distribuição e vários outros clichês corporativos. Porque esses diplomas de “exatas” e afins se tornaram, nesse mundo de robôs e algoritmos, exatamente isso – um curso técnico mais profundo. É aquele efeito que você já deve ter visto de algum conhecido, o bancário que faz Administração ou Economia à noite pra poder subir um nível salarial, ou o concursado que faz Direito pro mesmo fim. Já escrevi aqui inclusive sobre a garotada mais bem-nascida que vai se embrenhar nas leis não pra advogar ou se especializar em profundas análises dos códigos civis e penais, mas sim pra fazer concurso pra juiz e disparar sentenças como aprendidas na faculdade, porque não aprenderam a pensar, saindo direto dos bancos escolares, viciados em pensar que estudar serve apenas para conseguir as notas necessárias. E isso, é claro, não se aplica apenas a juízes, mas a gente em todos os ramos desses conhecimentos “exatos”.

E mesmo essa tecnização universitária, criando montes de gerenciadores de rotina, também tem um prazo de validade. Assim como a robotização destruiu os operários de fábricas, a informatização está começando a destruir os velhos empregos de classe média. Hoje em dia bancos funcionam praticamente com atendentes de telemarketing e gerentes. Todos aqueles cargos clericais se foram. E mesmo as atribuição dos gerentes não passam de administração da rotina. Algoritmos de mesas de crédito decidem a quem e como devem ser feitos os empréstimos, algoritmos de mesas de investimentos decidem onde e em quem aplicar e assim por diante. Tribunais funcionam com metade dos funcionários, pois não há mais necessidade de um batalhão de datilógrafos pra endereçar as intimações. Artefinalistas, letristas, tipógrafos, esse tipo de gente não mais povoa agências de publicidade. Essas tomadas de decisão ou habilidades artísticas básicas já podem ser feitas por qualquer um que saiba usar um computador. Quem desejar realmente um trabalho à prova de futuro não pode ser o operador desses instrumentos. Tem que ser o sujeito que desenha ou programa esses instrumentos. Ou quem toma as decisões complexas, que vão formatar os algoritmos para as decisões mais simples. Os ANALISTAS.

Como esse texto já está prolixo mesmo, é hora então de contar outra historinha (esse negócio de gente contando uma história por cima da outra me lembra A COMPANHIA DOS LOBOS). E, por falar em contos de fada realistas ingleses do final dos anos 80, início dos 90, a historinha que vou contar agora é sobre o Neil Gaiman. O inglês gótico lá pelo meio dos anos Zero (sim, século XXI), recebeu um convite do governo chinês pruma convenção de nerds. Você sabe, aqueles encontros de fãs e autores de fantasia, ficção científica, histórias pseudomedievais, super-heróis e essas coisas todas. O Gaiman jogou seu sobretudo e suas roupas pretas na mala e se mandou lá pro outro lado do mundo. E estava animado o negócio. Tanto que, a certa hora, perguntou lá pros representantes do governo que tinham ido recebê-lo, “sabe, eu fiquei surpreso de vocês terem me chamado pressa convenção. Não faz muito tempo vocês nem publicavam meus livros, porque eram pueris fantasias burguesas e em nada contribuíam para formar o cidadão”. 

Os representantes do governo concordaram e explicaram pro inglês cabeludo o que tinha levado-os a mudar de ideia: “Bem, sr. Gaiman, estamos muito felizes de finalmente encontrá-lo face a face. Durante muito tempo o senhor foi um escritor fascinante... fascinante mas que julgávamos pouco poder oferecer para moldar o caráter de um útil cidadão de nossa milenar nação. Mas, nos últimos anos, começamos a perceber que formávamos engenheiros, programadores e desainers muito bons para fazer engenharia reversa de outros produtos, ou mesmo simplificar meios de produção de certas mercadorias, barateando seu custo... mas não temos grandes inovadores. Faltam-nos aqueles criadores visionários que impulsionam o grande salto para a frente... Então, começamos a fazer uma pesquisa, no estilo que vocês anglo-saxões chamariam de analytics ou big data. Esquadrinhamos os fatos conhecidos das vidas desses grandes inovadores e chegamos a uma surpreendente conclusão. Essas pessoas costumam ter tido durante a infância uma grande atração por histórias fantásticas e de ficção científica. Devoraram livros e livros – e filmes e afins em períodos mais recentes – relativos a mundos que nunca existiram. Não somos inflexíveis, sr. Gaiman, e aprendemos bastante rapidamente com nossos equívocos. Portanto, em vez de desencorajar esse tipo de literatura e arte, passamos em pouco tempo a encorajá-la, na esperança de forjar com ideias retiradas de universos alternativos o futuro do Império do Meio” (provavelmente não com essas palavras, é claro).

Isso porque esse tipo de mente criativa precisa de mais estímulo e até uma certa idade eles não têm compreensão suficiente pra pegar um livro sobre a História da Riqueza do Homem. Então partem pra fantasia, que requer menos conhecimento factual sobre o mundo real. Aqueles que desde cedo saem em uma jornada pra conhecer as pessoas nesse mundo real, então, fazem melhor ainda. Porque a mente humana, pra ser produtiva, precisa de estímulo. E ensinar a ler, escrever e fazer contas, a seguir as regras exatas das “exatas” sem questioná-las, sem delas duvidar, sem desafiá-las, é a estrada da mediocridade. Um programa de OCR lê mais rápido e eficientemente do que a imensa maioria das pessoas. Uma calculadora de 10 reais faz contas melhor do que qualquer gênio matemático. Ler e escrever não é ensinar a fazer um texto; fazer contas não é matemática. Ambas são formas de arte, literatura e matemática pura, essa particularmente uma ciência abstrata e praticamente irreconhecível pelos fãs do tecnicismo.

Bill Gates largou o curso de Direito em Harvard pra ser o homem mais rico do mundo. Marissa Mayer, ex-executiva top do Google e ex-presidente do Yahoo, “ingressou na Universidade de Stanford pretendendo se tornar neurocirurgiã pediátrica, mas trocou o curso de neurociência pediátrica para sistemas simbólicos, que combinava filosofia, psicologia cognitiva, linguística e ciência da computação”. Steve Jobs famosamente nunca se formou, apesar do que seus pais adotivos tinham prometido à sua mãe biológica (ela não ficou chateada com isso). Ele chegou a entrar numa faculdade, mas cursou apenas 6 meses e obteve uma permissão para assistir aulas livremente, por 18 meses, como Observador. Segundo o próprio, um dos cursos que mais o impressionou e influenciou foi Caligrafia. Nas palavras do sr. Maçã, "aprendi sobre letras com serifas e sem serifas, sobre variar a quantidade de espaço entre diferentes combinações de letras, sobre o que torna uma tipografia excelente. Era lindo, histórico, artisticamente sutil de uma maneira que a ciência não pode captar, e achei fantástico”. Bem-vindos ao povo que, no mundo do conto do Asimov, iria parar na “Casa”. Esse é o tipo de gente que queremos formar. O resto são empregos que vão acabar. A única formação técnica com futuro pelo menos pelos próximos anos é o tipo de ensino que ninguém quer financiar: pedreiros, carpinteiros, bombeiros hidráulicos, porque não temos nenhuma previsão de quando teremos um robô capaz de quebrar uma parede, encontrar um defeito e consertá-lo. E, por incrível que pareça, ENCONTRAR UM DEFEITO NESSAS COISAS E SABER CONSERTAR exige um conhecimento analítico que surpreenderia a maior parte dos universitários que sabem ler, escrever e fazer conta e chamam o chefe quando veem algo com o qual não sabem lidar.

Isso me lembra ainda quando, depois de uma longa entrevista ao Globo, o Eugênio Gudin tornou-se colunista no jornal. Não de economia, mas de variedades, um precursor do Roberto Campos. Só o conheci já quase nonagenário – o que hoje em dia valeria como centenário – e tinha e apenas uns 14, 15 anos, mas o tipo de pensamento conservador “iluminado” dele me deixava furioso. Americanófilo declarado, defendia ideias de que os ianques tinham perdido a guerra do Vietnã por causa dos protestos dos hippies e do Congresso, porque não podiam usar todo o seu arsenal contra aqueles minúsculos orientais (não, eles não podiam usar porque senão os soviéticos iriam usar o deles também) e que não fazia sentido tentar industrializar o Brasil, porque era pouco inteligente tentar competir com a indústria estadunidense.

Hoje em dia ninguém tenta rivalizar com o magnífico parque industrial americano mesmo. Ele migrou todo pra outros lugares. Ficaram os analistas, os desenhistas. Ninguém compra mais produtos “made in USA”, mas coisas como “made in China, designed in Palo Alto, California”. A propriedade intelectual está se tornando o bem mais valioso. Já aconteceu com a Inglaterra e o Japão. Este último, inclusive, está cada vez mais dominando o mundo culturalmente à base de animê, mangá e ninfetinhas amarradas sendo estupradas por tentáculos. Mas não era por causa disso que o Gudin achava desnecessário a ideia de criar uma firme industrialização no Brasil. Ele não previu as mudanças pelas quais o mundo iria passar com a informatização, inclusive por causa do seu pensamento conservador. A época da coluna dele era a mesma em que os robôs das automobilísticas japonesas estavam levando-as a dominar o mercado, mas ele não via isso. Era o começo das fábricas automáticas. Estamos caminhando para um futuro “Jornada nas Estrelas”, em que bens de consumo ainda estão looooonge de serem feitos por sintetizadores (movidos a reação de matéria e antimatéria), mas os métodos de fabricação automatizados barateraram tanto a produção que mergulhamos num mar de consumo desenfreado (para o bem e para o mal). Lembro que meu pai, marceneiro e carpinteiro, escondia de suas crianças algumas chaves de fenda de relojoeiro porque eram caras e frágeis. E delicadas. Você pode comprar um estojo delas no camelô hoje em dia por 10 reais.

Finalmente, para fechar o raciocínio, uma última historinha. Lá do começo dos anos 90. A Veja, já há 30 anos, apoiou firmemente o Collor, porque já naquela época era preciso não deixar o PT chegar ao governo. Então, como hoje, acabaram se arrependendo quando o sujeito tentou sequestrar MESMO o poder, acumulando em suas mãos – e de sua turminha – todos os cargos e até mesmo símbolos que pudesse. E, então como hoje, começaram a fazer uma campanha contra ele. Lembro de um artigo que eles fizeram indo a Maceió e entrevistando os coronéis da terra pra “entender o pensamento” do presidente, mostrando-os como uma cáfila de grosseiros broncos. Num dos parágrafos, diziam que, num esforço para aumentar o refinamento da galera, o governo incentivou a abertura de um restaurante de luxo, mas que tinham acabado por permitir que as pessoas fossem de bermuda, por ser impossível detê-las (sim, sinta a ironia do pensamento conservador, que hoje a adota como uniforme). E, numa das entrevistas com os poderosos, que tentavam parecer modernos e empreendedores, um deles dizia que a vocação do Nordeste era o turismo, mas ele era populoso demais pra isso. Então a solução seria mandar metade do povo pra Amazônia.

Esse é o tipo do pensamento conservador dessa galera. Pra eles e pra todos seus conhecidos, a vida está ótima. Eles estão bem, dá pra galera ganhar uma grana pilotando Uber e bicicleta de entrega, e estudando – lendo, escrevendo e fazendo conta – pra manter as coisas funcionando. Não as mudar. Como aquela piada do algoritmo para reparar sistemas - “está funcionando?” - “Não mexa” - “Você mexeu?” - “seu idiota”. É preciso ser exato e técnico. Nada pode escorregar do lugar, principalmente porque não vai ter ninguém pra ver que o lugar escorregadio é que de repente dá onda.

O brilhante intelectual Gudin não podia ver para onde o mundo estava indo bem debaixo de seus olhos e ainda se agarrava à vocação agrária do Brasil. O próprio agronegócio hoje em dia é automatizado e desumano – no sentido de que precisa de relativamente poucos humanos para funcionar. O mundo muda, a tecnologia surge porque, apesar de todos os esforços dele, a galera cujo cérebro não tem as sinapses pré-programadas pralguma coisa pensou em algo diferente.

Esse é o pensamento da mediocridade. Vimos agora as filas enormes em shoppings, mesmo sob risco de pandemias. As vitrines são padronizadas, o céu não e visível, os restaurantes são franquias que fazem a comida de acordo com as normas exatas. Passar pela rua, pelo Saara, esbarrar em lojas antigas e empoeiradas não são a onda deles. É o mundo uberizado, onde podem ser mimados e ter o prazer de encontrar o já conhecido. Não sofrer o estresse do desafio. É o povo que acha que o turismo é mandar metade da população pra outro lugar, ou abrir à exploração uma área preservada, pra fazer um complexo como o de Cancún. Ou Miami. O turismo tem que ser para um lugar reconhecivelmente como um shopping. Não há o interesse em conhecer o diferente, só o semelhante. São turistas registrados. Assim como profissionais registrados, exibindo seu crachá de ler-escrever-fazer conta. Nunca tive – e lamento – vocação pra mochileiro, mas lembro uma vez em Madri quando encontramos uma brasileira e perguntamos sobre Toledo, e ela disse que bastava uma tarde pra conhecer, pegar um trenzinho pra circular pela cidade e pronto. E quando chegamos encontramos uma lindíssima vila medieval, inclusive pouco modificada pelo menos desde o Tristana, do Buñuel, lá de 1970. Porque lembro de estar vendo o filme com a Ana e, quando o Fernando Rey para pra falar com um personagem, “ei, eu conheço essa porta. Hoje em dia tem uma fábrica de espadas (aço toledano!) lá”. E, quando a câmera abre, vemos o cartaz – o mesmo! - da fábrica de espadas.

Weintraub – e Bolsonaro – foram treinados na mediocridade. Este é um militar de média patente, acostumado a seguir – e dar ordens, sem questionar ou ser questionado. Não para pensar. Não por acaso ele sempre gostou de dizer que qualquer coisa, pergunte ao fulano do seu governo. Ele faz apenas o que o mandam fazer, e exige o cumprimento inquestionável, mesmo que não entenda ou concorde. Já o primeiro é bem-nascido filho de um famoso psiquiatra que cresceu à sombra do pai e se envolveu em um processo para interditar o patriarca, porque receber a herança dos pais é o desenvolvimento óbvio de sua vida. Obcecados em criar um país de técnicos de “exatas”, aparentemente nem percebem que estão seguindo as ordens de seu grande ídolo, um autodenominado filósofo, sem formação universitária, mas cujo conhecimento geral – ainda que superficial – é bastante superior ao deles (2) – para não falar de sua oratória e gramática. 

Tivessem eles tido uma formação humanista geral, não se deixariam enganar tão facilmente.

(1) Há muitos anos, um amigo meu com inclinações parecidas falava que realmente o que importavam eram as Leis Naturais, que são fixas e imutáveis (parece que ele não entende muito de fisica quântica – aliás, nem eu). Tentei explicar pra ele que ciência na verdade é uma corrente filosófica, basicamente. Ela se apoia na ideia de que certos fenômenos cíclicos continuarão sendo cíclicos (ou algo parecido, não sei explicar direito agora). Pra explicar melhor, por exemplo, chegamos à conclusão que a Terra gira em torno do Sol porque todo dia ele nasce no leste e se põe no oeste, mas, na verdade, não temos NENHUMA garantia de que isso vá acontecer amanhã. Não existem “Leis Naturais”, algo como uma Constituição firmada e promulgada por Deus, Odin, Galactus e o Tribunal Vivo (ele era nerd). Não existem “números” na Natureza, é uma invenção humana, abstrata e de difícil explicação. As “Leis Naturais” são uma abstração da mente humana tentando fazer sentido de um monte de matéria – e energia – espalhados pelo Universo.

(2) Existe esse tipo de pessoa que tem um conhecimento geral superficial, oriundo de fontes de segunda mão (ops, estou me expondo!), artigos de revistas ou lições bem lembradas do segundo grau. Normalmente ele se sobressai entre os viventes de formação puramente de série de tevê e filme americano, o que acaba subindo à cabeça deles e fazendo-os crer que têm a explicação para tudo. Quando se junta a uma personalidade carismática, costumam ter um séquito de viventes impressionados com a eloquência e fartura de respostas diretas e simples.

(3) Meus amigos mais próximos não aguentam mais, mas vou contar mais uma vez uma historinha passada comigo na 5a. Série do São Bento – que todo ano é o melhor ou um dos melhores colégios do Brasil no Enem. Eu tinha acabado de entrar praquela escola, vinha de uma pequena e familiar, estava assustado com aquele negócio enorme, aquele esquema de aulas seguidas de uma hora com professores diferentes, enfim, todo melindrado. Durante a aula de história, sobre a formação da Terra e surgimento da vida, perguntei ao professor se a vida não poderia ter começado com pedaços vindo de outros lugares do sistema solar. “Claro, Luiz”, resondeu o professor que, não satisfeito em nem se dar ao trabalho de dar uma resposta elaborada, ainda resolveu fazer bullying com um garoto de 10 anos, “os dinossauros vieram em um meteoro. Ele parou aqui e eles saltaram”, pra turma toda rir. Quem gosta de ler essas coisas de Superinteressante obviamente já tá ligado que hoje em dia uma das principais teorias do surgimento da vida na Terra é de que moléculas orgânicas ou bactérias tenham chegado aqui em meteoros de outros corpos celestes, porque tem uma turma que acha que decorreu muito pouco tempo entre o esfriamento do nosso planeta e o surgimento de um monte de organismos

janeiro 14, 2020

A Justiça Cativa


Antes da Constituição de 1988, os concursos para juízes exigiam pelo menos 35 anos de idade do candidato. Era um tempo para o sujeito se formar e passar uns 10 anos trabalhando em algum lugar antes de encadeirar-se em sua sinecura. Não por coincidência, já diziam os antigos – aquele povo qe vivia antes da Constituição de 1988 – que você levava 10 anos pra se tornar bom naquilo que gostava de fazer.

Nesse ínterim, se você fosse trabalhar com Direito, você iria lidar com clientes. Com juízes. Com funcionários. Interagir com gente, enfim. Aprender como funciona o mundo. Porque um dos assuntos da moda entre o povo pensador é como as redes sociais criam “bolhas”, isolando o indivíduo do contato com pessoas que vivam ou pensem diferentemente dele, mas na realidade estamos fazendo o mesmo há décadas, desde que arquitetos e governantes decidiram que o modelo ideal de cidade é a equivocada “cidade-jardim” de Le Corbusier – uma ideia, aliás, que lá por fora já está se tornando obsoleta, mas por aqui ainda é um ideal de vida (cf. Barra da Tijuca, que, mesmo nos anos 70, o auge do pensamento urbanista modernista, era conhecida como um “bairro sem esquinas e, portanto, sem bares de esquina”).

Quem aliás primeiro chamou a atenção pra isso foi a Jane Jacobs no seu fundamental e altamente influente livro, “Vida e Morte das Grandes Cidades”. Ela conta que, no começo do século XX, com o automóvel barateando, Le Corbusier e sua turma sonharam com uma “cidade-jardim”. As pessoas não precisariam morar perto do trabalho, porque poderiam se deslocar até lá em seus próprios veículos. Pra quem viveu nos já citados anos 70, respirando as titânicas nuvens de carbono dos escapamentos dos ônibus e carros mal regulados, a ideia pode soar ridícula, mas é porque, segundo a Jane, nunca tivemos que chafurdar em bosta de cavalo acumulada por ruas estreitas e fedorentas, sem ventilação ou árvores.

Além do mais, no século XIX, um prefeito de Paris, o Haussman, botou meia cidade abaixo pra criar bulevares arborizados, com casas devendo obedecer regulamentos não só de construção como de estética, e amplos, bem amplos (segundo muita gente, pra facilitar a movimentação de tropas pra reprimir as constantes revoltas populares parisienses). Que fica bonito é inegável, mas esse tipo de reforma acaba levando primeiro ao afidalgamento do lugar (gentrificação de cu é rola) pela valorização imobiliária e, subsequentemente, ainda que paradoxalmente, à decadência da área (a turma endinheirada acaba preferindo ir criar seus filhos em um lugar mais isolado, onde não tenha tanto barulho e movimento, deixando tudo pro comércio e pra serviços, o que torna o local deserto à noite, atraindo prostituição, tráfico, violência etc. Etc. - cf. Avenida Central, atual Rio Branco, aqui no Rio de Janeiro).

Mas, voltando ao Le Corbusier. Influenciado por Haussman, ele foi ainda mais radical. Livraria as massas da imundície e pestilência das fezes equinas e as levaria ao paraíso: blocos residenciais cercados de jardins e alamedas arborizadas, com enooormes ruas para o deslocamento dos veículos que levariam o povo a seu trabalho e às suas compras, em centros comerciais. Bem-vindos a Brasília e à Barra da Tijuca. Ou aos famosos “suburbs” americanos (1).

A Jane afirmava que esse tipo de urbanismo é típico de alguém que ODIAVA cidades. Pois o bom da cidade é justamente a mistura. A convivência com pessoas de outras camadas sociais, com outros objetivos na vida, com outro tipo de pensamento. Pra vocês entenderem, aquela coisa do jornaleiro que tomava conta pra você se o encanador ia chegar, o coroa dono do bazar/papelaria/loja de material de construção/armarinho/loja de brinquedos (sim, antigamente tinha muitas e muitas dessas lojinhas) que trocava seu cheque e por aí vai. É exatamente essa vivência que é o objetivo da cidade. O pessoal ia pra ela pra arrumar trabalho, aprender um ofício, abrir as ideias. Já que falamos de Paris, os pintores, escritores e afins iam todos pra lá no começo do século XX justamente pra ter contato com o pensamento de toda essa turma onde tudo estava acontecendo agora.

Não demorou muito pras pessoas descobrirem o que podia dar errado com esse urbanismo: grandes engarrafamentos, dificuldade pra sair do bairro pra fazer qualquer coisa e voltar (Barra, estou falando com você), tédio e degradação. Já em 1965 essa mulher (http://blog.modernmechanix.com/one-womans-confession-i-hate-suburbia/) reclamava de tudo: acabavam não indo para o sonhado clube ou golfe por falta de tempo, gasto nos congestionamentos; falta de entretenimento; falta de vida social ou cultural, porque ninguém tinha disposição pra ir até o centro: e, finalmente, voltando lá pro assunto inicial, sua preocupação com a sua filha adolescente atraída pelo filho do vizinho, que a mãe julgava superficial e materialista – mas com quem mais ela iria se enrabichar, se não conhecia ninguém, ou pelo menos ninguém diferente? (2)

A Constituição de 1988 acabou com esses limites de idade por causa de sua vocação antidiscriminatória. Ninguém deveria ser prejudicado por problemas físicos, religião, ideologia, orientação sexual ou... idade. Pra cima ou pra baixo. Afinal de contas, porque vedar acesso à magistratura de gente que já com 20 anos poderia passar num concurso pra juiz? Por falta de vivência, talvez.

Certo, certo, não vamos discordar que existem aqueles gênios superdotados que aos 14 anos já estão na faculdade (o que, aliás, costuma levar a gente que aos 30 anos não sabe o que quer na vida, conforme um documentário que vi há alguns anos, mas cujo linque não consegui achar). Mas Direito não é uma ciência exata. Leis não se aplicam com manuais, apesar do que possam querer fazer os leigos acreditar. E o Estado de Direito é muito mais complexo e exigente do que nós, nos inexperientes 20 anos, poderíamos pensar.

Um juiz tem que saber como a sociedade funciona e os limites de seus poderes e entendimento. O que é um conhecimento que 10 anos de advocacia ajudariam bastante a adquirir (ou piorar, mas aí são casos perdidos mesmo). Aceitar garotada de 20 e poucos anos que nunca trabalhou de verdade na vida e saiu da faculdade pra ficar em casa estudando prum concurso é como querer botar na magistratura astros do rock que gostam de demolir quartos de hotel enquanto cheiram todas ou jogadores de futebol que acham que craque é só o sujeito que faz muito gol ou dribla todo o mundo.

Descobrir como sentenças afetam as vidas de seus clientes, ser reprimido ou intimidado por juízes e funcionários, aprender a lidar com as pessoas e seus sentimentos, isso é um capital que não se adquire lendo livros ou aprendendo teorias. Até porque, na verdade, Direito é como História. O historiador não é aquele sujeito que decora todas as datas, até porque isso basta ver na enciclopédia. É na verdade o cara que entende como as coisas se desenrolam, a vida e a morte das civilizações, e pode até mesmo descobrir analogias que nos permitam prever o futuro. Do mesmo modo, o bom advogado – ou juiz - não é necessariamente aquele que sabe todos os artigos da Lei, mas que entende o que é justo e é legal e usa a lógica para aplicar esses conhecimentos a casos concretos. E só colecionando um monte de experiências e interações é que se pode chegar a uma verdadeira compreensão do que é justo e legal.

Também não vale nem a pena levar em conta que garotada tem mais tempo e concentração pra estudar. Passar num concurso tão jovem também pode levar a criatura a perder o hábito de aprender – sim, porque isso é um dos maiores problemas com nosso sistema educacional, quando realmente começamos a entender e a apreciar o que é aprender, somos jogados no mercado de trabalho, sem tempo pra isso. Gente que estuda o tempo inteiro, às vezes anos (1 ou 2 anos parecem uma eternidade quando se tem 20, lembram?), passa no que quer e depois pronto, não quer mais ver aquilo. Cristaliza seu conhecimento e não quer mais saber de nada.

As nossas bolhas chegaram à Justiça e criaram gente que chegou ao pináculo da profissão (3) ainda muito jovens. Não conhecem restrições, não têm ideia das consequências dos seus atos e não conhecem as pessoas. É assim que formamos gente que condena porque tem convicção, mas não provas, que acha justo que ninguém sequer investigue se algo assustou um policial e ele matou o cara, e que acha que qualquer um que queira, basta estudar e chega lá. Um amigo meu definiu bem, nós inventamos os juízes criados em cativeiro.



  1. Não vou traduzir porque o que chamamos de subúrbio é outra coisa completamente diferente. O dos americanos é aquela coisa que vemos em filme, um monte de casinhas com quintal, longe do centro, longe de tudo.
  2. Pra dar um pouco de tempero ao texto, vou contar que justamente esse isolamento e falta de entretenimento teriam dado origem à cultura do “swing” - a popular troca de esposas. Juntando-se a isso o tédio das mulheres, ainda não inseridas no mercado de trabalho e passando as tardes sozinhas em casa, com suas tarefas reduzidas por causa dos eletrodomésticos e refeições industrializadas (restos de refeição envolvidos em gelatina instantânea viraram um fundamento da culinária dos anos 50!, e começou a era das infidelidades, dos divórcios, e das festas da chave. Essa modorra existencial levando a sexo casual foi o tema de vários filmes eróticos (não pornográficos, até porque nem rolava na época) de Joe Sarno, hoje em dia um cultuado diretor, considerado um autor cinematográfico. Confira a sua obra-prima, “Sin in the Suburbs”. Pode começar com esse trecho no VocêTubo, pra depois ver se tem coragem de me dizer que o Kubrick não assistiu a essa fita.
  3. Na verdade, um advogado realmente bem-sucedido ganha mais – e pode amealhar bem mais poder – do que um juiz. O que causa muitas rivalidades quando dois grandes egos se encontram, um de cada lado da tribuna.

dezembro 17, 2019

São Seus Olhos

O tempo não existe, é apenas nossa consciência trabalhando como o homem que esculpia cavalos tirando da pedra tudo que não fosse cavalo. Tudo acontece simultaneamente, toda a matéria está em todos os lugares eternamente e construímos uma história entalhando nessa massa bruta nossas alucinações de divinas ilusões.

dezembro 03, 2019

Poema do Precisamos Conversar

(Primeira Versão)

Sim, vamos conversar
Sim, vamos nos encontrar

Te encontro naquela
Esquina na Barra
Naquele boteco no shopping
Te ligo pra confirmar
Pro telefone da sala

Debaixo de um nu de Renoir
doado pela Igreja Universal
Bebendo aquele poire
Vamos argumentar
De um jeito bem racional
E vamos vaticinar
"Vamos sempre nos amar"

Você não vê que não vai dar?
Você não vê que não vai dar?

Depois de tanto do teu desatino
Fui pras ruas feito chileno
E nem a polícia do Piñera
Me impede de ver que não vai dar
Todos os teus pecados
são excludente de ilicitude
E os meus, um triplex pra alugar

Você foi minha redução na pobreza
Neil Young no Rock in Rio
Matisse em Nice
Péricles em Atenas
A dor boa da tristeza
A cultura no cio
Jericoacoara e Fortaleza
Uma puta na cama
Uma puta no mundo
Uma dama na cama
E ainda dizia, "você é o cara"

Agora é a queimada na Amazônia
O golpe na Bolívia
O óleo no oceano
Aposentadoria no Chile
A Escola de Chicago
Neoliberalismo privatizando
Minha vida em tuas mãos
Quando te quis guardiã
Você me foi Guaidó

Sim, vamos conversar
Sim, vamos nos encontrar
Você não vê que não vai dar?
Eu posso ver que não vai dar
Eu posso ver que vou chorar
Eu posso ver que não vai dar
Minha Psiquê Minha Erínia Minha Pandora
Eu posso ver que vou chorar

novembro 10, 2019

Se "Coringa" é a Resistência, Estou Fora


O Coringa já está chegando a um bilhão de dólares pelo mundo. A quantidade de gente que achou o filme de brilhante a genial é imensa e, o que é pior, pruma boa parcela dessa galera a fita encarna o espírito de rebelião de nossos tempos, a população se levantando contra a opressão dos ricos capitalistas, as massas finalmente acordando de sua letárgica passividade para se vingar do sistema que desequilibra as probabilidades e as chances contra nós, o povo. Mas, na verdade, tudo isso só serve mesmo é pra provar que o diretor se equivocou feio na sua concepção, porque, se o Coringa é a resistência, então, como já disse o John Lennon pra outro pessoal que queria fazer uma revolução, “you can count me out”.

Antes que me acusem de ter pronunciado irredimivelmente que Gozador é filme de pobres predicados, deixo aqui, como fazem os produtos americanos, as ressalvas contratuais: é uma obra (extremamente) competente tecnicamente, desde o visual que recria perfeitamente (ao ponto do plágio) os filmes do Scorsese do final dos anos 70/início dos 80, até a tremendamente enaltecida intensa entrega do Joaquin Phoenix – o que, inclusive, distraiu muita gente da qualidade da atuação como um todo, de Frances Conroy a Zazie Beetz. Toda a parte técnica é irretocável. A edição, por exemplo, como se poderia esperar num produto americano com um orçamento desses, é perfeita e até mesmo retrô. Porque a fita tem um ritmo consideravelmente mais lento do que o típico espetáculo de super-herói. Esse, aliás, provavelmente é um dos motivos que levou muita gente a ficar impressionada com a fita.

Os arrasa-quarteirão de super-heróis – e filmes de ação, em geral – sofrem hoje em dia dos mesmos problemas que os maus musicais da Hollywood clássica, que tanto irritavam o blogueiro na Sessão da Tarde. A cada 15 minutos, justo quando o espectador está começando a se interessar pela trama e pelos personagens, a história tem que parar quase 10 minutos pruma cena que não avança o filme em nada dramaticamente, apenas para exibição de virtuosismo nas cenas que o povo pagou ingresso pra ver. Virtuosismo que, no caso dos musicais, pelo menos, era a inacreditável perícia dos atores/dançarinos/cantores/acrobatas e, nos filmes de super-heróis, se resume à quantidade de horas e qualidade dos programas e computadores contratados pra fazer a animação das porradarias dos supercaras.

O valente editor da Zé Pereira diz que o roteiro original do longa não incluía o maior inimigo do Batman, só um palhaço maléfico (que, aliás, parece ser um arquétipo e dos bons) e alguém viu e comentou que, “ei, bota o Coringa aí”. Embora não tenha encontrado numa pesquisa rápida de Google nada que corrobore a ideia, foi exatamente o que ocorreu ao blogueiro durante a fita. O sujeito que comentou, inclusive, é um gênio, já que dificilmente os pagantes de um bilhão de dólares se sentiriam animados a assistir ao lento enlouquecer de um indivíduo oprimido pelas metrópoles impessoais do final do século XX. Prometida a aparição de um vilão de quadrinhos, trazendo consigo assassinatos e crimes fabulosos, um monte de gente correu aos cinemas pra ver uma obra que monta suas peças pouco a pouco, devagar porém ininterruptamente. Vencida a impaciência do público com o título “Coringa”, a galera que não vai ver esse tipo de filme não só acaba curtindo, como ainda fica impressionada, “uau, isso é diferente, isso tem classe, deve ser uma obra-prima”.

E tão impressionados ficam, aliás, que até esquecem que o Coringa foi enfiado ali como um cubo no lugar da esfera a marretadas pelo Homer Simpson num teste de inteligência. Pra origem do Coringa, ainda que alternativa, nada faz sentido. A época está errada; o Thomas Wayne é diferente daquilo que se conhece dele, e parece muito pouco uma figura que tenha inspirado o filho a lutar contra o mal e a injustiça; a não ser que Arthur Fleck tenha se submetido aos mesmos experimentos que o Cérebro do Pinky & Cérebro, não tem como aquele sujeito vir a tecer aquelas tramas mirabolantes que tanto enredariam o Batman e tampouco é verossímil que aquela criatura venha algum dia a desenvolver habilidades físicas ou marciais pra se impor num eventual mano a mano com um supervigilante ou mesmo capanga descontente.

Mas esse não é o ponto que o blogueiro queria apontar. A fita tem um problema sério de direção, apesar dela emular tão perfeitamente o Scorsese daquela época a ponto de borrar as fronteiras entre homenagem e plágio, ou de sentida referência e por pra trabalhar ideias de outras pessoas. Afinal de contas, o Coringa e sua horda de revoltados seguidores são vilões ou um exemplo a ser seguido? Um amigo disse que antes mesmo da história começar, já sabemos que o Coringa é a encarnação do mal. No entanto,Tropa de Elite também deveria ser um filme sobre como a violência no Rio de Janeiro cria um bando de fascistas onde deveria estar a polícia e vimos no que deu, com um bando de gente achando que estava elegendo o grande Capitão Nascimento.

O Coringa se revolta contra o mundo, mas que revolta é essa? Contra os ricos? Os ricos que vemos são caricaturas e, pior, caricaturas do que os esquecidos do Trump enxergam como sendo a classe média liberal. Gente com hábitos finos, que herdou sua fortuna e não produz nada. Gente que não mete a mão na massa como o Véio da Havan, por exemplo. Ódio aos ricos não é exclusividade da esquerda, até mesmo os nazistas propalavam retórica contra eles. Ainda mais se fossem judeus, que ainda se encaixavam perfeitamente no tipo, sendo comerciantes e financistas (1). Os babacas em quem ele atira no metrô são convenientemente investidores de Wall Street, justamente a galera de quem Trump tanto falava mal. Eles não estão gerando empregos ou produtos, são apenas parasitas do sistema. E são protótipos do que um pouco mais tarde naqueles mesmos anos 80 seria batizado de yuppie – a classe média alta com gostos “refinados”, valores culturais mais hedonistas e, apesar de normalmente serem ideologicamente mais afinados com a direita neoliberal, a encarnação do que eleitores do Trump enxergam como a população urbana rica liberal que vive em orgias bissexuais (2). Significativamente, Arthur Fleck não atira neles quando estão incomodando a mulher, mas quando se voltam contra ele.

O que também é uma falha de direção. Eles assediando sexualmente a mulher obviamente é usado para que simpatizemos com o Coringa. Mas Travis Bickle Arthur Fleck não se volta contra eles por isso. Na verdade, quando atraído por uma mulher, ele a assedia do mesmo jeito, perseguindo-a o dia inteiro, o que também não é uma aula de como se tratar moças. Na verdade, durante a constrangedora cena no metrô, o espectador pode ficar na dúvida se Fleck despreza os caras pelo que estão fazendo ou porque ser melhor do que aquilo justificaria o fato de que ele não tem coragem pra se dirigir a quem deseja.

E, como sempre, Fleck só vai atirar nos caras quando o atingido é ele. Na verdade, o que parece um brutal ataque à individualidade do sujeito conta pelo menos com sua ativa colaboração. Sua terapeuta pode não ajudar muito, mas o futuro Coringa ajuda menos ainda. Esconde seu diário que ela falou para ele manter, não conta o que o aflige e só está preocupado em arrumar mais receitas (numa postagem futura vou contar como o mundo dos remédios e da objetividade ajudou a montar o mundo neoliberal e, hoje, o início de um movimento de volta, está nos levando a outro momento de contestação e rebeldia).

Fleck quer ser um famoso comediante, mas, como diz sua mãe, ele não é engraçado. Suas piadas são ruins, quando não copiadas diretamente de apresentações de outros. Ele não tem talento, mas persevera, porque, citando outro filme que o editor da Zé Pereira despreza, “chegamos aos 30 anos e não nos tornamos os astros do rock que a televisão nos prometeu. E agora?”. Ele cuida da mãe, mas talvez viva do pensionamento dela. Seu grande sonho é ser reconhecido como filho de uma personalidade da telinha. Ele não se relaciona com ninguém e não se esforça pra isso, a não ser juntar-se ao bullying de uma pessoa pequena numa cena no início.

E, como diz o valente editor da Zé Pereira, americanos não entendem nada de política. Depois de afirmar e reafirmar que é apolítico e não apolítico, no programa de tevê final, Arthur Fleck faz um longo discurso justificando politicamente as suas ações. Na concepção ianque, e de uma certa parcela aparentemente majoritária no Brasil (cf. As últimas eleições), política só é política se algum sujeito eleito e um partido, com uma longa história de ativismo e participação, estiverem envolvidos. Todo o resto são apenas negócios, e negócios são bons, como pregam os neoliberais. A revolta de Fleck é na verdade ressentimento, ressentimento infantil contra pessoas mais bem-sucedidas. Em nenhum momento ele demonstra empatia com pessoas na mesma situação – ou pior – que ele. Na verdade, em nenhum momento ele demonstra empatia com absolutamente ninguém. Sua relação com a mãe parece apenas mais uma tarefa e, depois que ela o trai não o tendo concebido com um milionário (e automaticante pondo-o numa casta superior), ele simplesmente a mata.

E aí temos os problemas de concepção do filme. Fleck no final não tem mais que se preocupar com problemas financeiros, é famoso, tem uma horda de seguidores e está dançando feliz sem ninguém pra dizer que ele é esquisito. A fita, como Tropa de Elite, é toda contada do ponto de vista dele. Embora a produção americana esclareça que está usando o recurso do “narrador inconfiável” negando em cenas posteriores o que tinha sido visto antes, ambas cometem o mesmo erro fundamental: o único personagem desenvolvido é o central (ou, no caso brasileiro, o protagonista e seus amiguinhos). Todos os que o cercam não passam de caricaturas estereotipadas. No caso ianque, tudo ainda é mais acentuado porque a maioria das criaturas com quem o futuro arquivilão interage são negros ou latinos. Ele é um peixe fora d´água que está sendo expulso do ambiente que deveria ser dele.

Sintomática é a primeira coisa que o Coringa (imagina que) faz após seus primeiros assassinatos. Ele simplesmente toca na vizinha e já a agarra. Porque essa é a recompensa de quem é macho de verdade. O sucesso de um homem, como já expliquei numa postagem anterior, se mede pelas mulheres que ele come. Dinheiro, fama e poder são apenas instrumentos pra isso, não um objetivo em si, cf. “A mulher do Macron é feia”. O blogueiro (contando vantagem pra mostrar como é um macho superior) na hora imaginou que a cena só faria sentido se fosse imaginária, mas diversas pessoas que viram a fita acreditaram que estaria acontecendo. Esse é o tipo de gente que acaba o filme achando que deve se revoltar como o Coringa, atrair um culto de seguidores e libertar todo o seu ressentimento egocêntrico, pra acabar feliz, dançando e famoso. “Coringa” é um filme surpreendente pra quem vive numa dieta de super-heróis e zumbis, fora do padrão de mau musical de antigamente. Mas é um equívoco que pode muito levar seu público a acreditar que violência cega é a resposta para lhe estar sendo negada a mulher gostosa que toda a cultura pop prometeu a eles. Que lhe estão sendo negados o poder e a masculindade de ser um americano (como tem gente no governo que acha que é) branco cristão ocidental. Finanças e estudos são para os fracos, dê-me um 38 e eu serei o Coringa. Ou, na pior das hipóteses, o Véio da Havan.


  1. Na Idade Média, era considerado desonroso a nobres se dedicarem ao comércio, já que eles deveriam ser valentes guerreiros capazes de defender suas terras e, se possível, acrescentar mais umas. Também era considerado pecado e pessimamente visto pela Igreja que cristãos emprestassem a juros a outros cristãos. Percebendo esta lacuna (para usar jargão neoliberal), os judeus, que até mesmo por motivos de crença (estudo de Torah, estudo de Cabala, em um mundo sem clero hierarquizado) tinham uma população mais intelectualizada (i.e., para a época, ou seja, gente alfabetizada e capaz de fazer conta que não era um monge ou ministro de Estado), preencheram-na e se tornaram os banqueiros da Europa desde então. E comerciantes.
  2. Não por acaso eles usam pra ofender esse pessoal o epíteto de “cuck”, que seria mais ou menos corno, porque seriam praticantes de swing, ou poliamor, e gostariam de ver sua mulher trepando com outro – o tipo de valor que desafia toda a concepção deles, de família e sexo somente pra reprodução ou pra mostrar pros outros como você é capaz de ser dono de mulheres.


novembro 09, 2019

A Estupidez Antipragmática

Antipragmatismo, porque esse governo só tem burro

Veja esse caso de Cuba, por exemplo, como o Obama é esperto. Esquece essa história de fabricar tudo na China porque os operários são baratos. Na verdade, o salário lá já não é tão baixo mais, e os custos operacionais de funcionar no seu antípoda deixam tudo mais ou menos na mesma. Sem contar que as linhas de montagem também são quase todas automatizadas. Quando eu era pequeno, meu pai, como bom marceneiro, tinha suas ferramentas e elas eram caríssimas, eu nem podia chegar perto. Em vez de furadeira elétrica, ele tinha uma daquelas de desenho animado, em que você girava uma manivela, porque as elétricas eram caras. Particularmente escondido ficava um jogo de "chaves de fenda de relojoeiro", que também tinham um preço muuuuito alto - daquelas que você compra no camelô o jogo completo a 10 reais hoje em dia. Há uns 10 anos atrás vi um programa do Discovery, de uma série sobre como as coisas eram fabricadas, que mostrava uma fábrica de serrote. Sem que nenhum humano precisasse ir lá colar, cortar ou derreter alguma coisa, a fábrica produzia uma quantidade tão grande de serrotes que me deixou impressionado - uma semana de funcionamento ali deve suprir a demanda mundial por serrotes. Deve ter gente usando serrote uma vez e jogando fora.

Mas, voltando ao que interessa: hoje em dia, justamente por essas máquinas dominando tudo, o que compensa muito é o salário que você paga aos sujeitos com curso universitário. Ter um analista de produção, que vá organizar o fluxo dessas coisas; de sistemas, para programar as máquinas; de desenho, para otimizar o desenho dos produtos para ficarem ainda mais simples de fabricar - não é só pra você comprar mais que o desenho de uniformes de clubes de futebol vivem mudando. Até o engenheiro que vai consertar ou implantar essas máquinas.

Nos países desenvolvidos, por motivos óbvios, esses sujeitos são caros pra dedéu, mas na China não. Nos EUA, por exemplo, você se forma devendo tanto dinheiro à sua faculdade que tem que cobrar uma fortuna. É justamente por isso que, sim, o Brasil pode ser competitivo industrialmente, e daí tanto incentivo pra gente se formar neste século, em vez de formação técnica, que custa menos e também dá bom retorno pro sujeito que a faça - vai demorar muuuuito pra ter um robô que instale um ar condicionado na sua casa.

Pois bem, adivinha que país fica logo ali pertinho dos Estados Unidos, tem uma enorme população com curso universitário e disposta a trabalhar por 2 tostões? E quem é que estava financiando porto em Mariel, já estendendo suas mãozinhas nesse povo, depois de praticamente arrumar um contrato pra botar abaixo e reconstruir metade da América Central?

Pois é, daí começou a política obamista de "vamos ser legais com os cubanos". Não era por motivos humanitários. O que estragou tudo é que entrou o Inominável americano, que é burro e acha melhor ideia tentar destruir aquilo tudo e pegar os espólios. E nós entramos de idiotas junto a eles. Amanhã, quando voltarem os democratas, com seus objetivos de espalhar o bem geral pelo mundo, começarem a abrir fábricas e mais fábricas na ilha e a gente ficar cheio de produtos baratos (e, a princípio, vagabundos, como os do Japão, Hong Kong e China) "made in Cuba", vamos entrar pelo cano mais uma vez.

setembro 04, 2019

As Pessoas-Algoritmo

Vocês já repararam que as pessoas no trabalho vêm se portando cada vez mais como um app? Qualquer imprevisto e mandam tudo de volta pro chefe decidir. Ninguém mais improvisa, demonstra iniciativa ou supõe. Bem-vindos à Idade do Algoritmo.

agosto 26, 2019

Os Homens que Odiavam as Mulheres II

Tem um episódio dos Simpsons em que o Homer faz amizade com o dono de um antiquário algo excêntrico e ele até começa a frequentar a casa deles. Tão amigos eles ficam que a Marge, achando estranho essa demonstração de mente aberta do marido, tenta avisá-lo sobre a orientação sexual do sujeito. Depois de tentar inutilmente várias metáforas, ela fala, “acho que ele prefere a companhia de homens”. Ao que o Homer ri, com aquela risada profunda do soberbo dublador original, responde, “ora, e quem não prefere?”

No mundo mais careta e binário, onde meninas vestem rosa e meninos vestem azul, estes últimos não têm muito estímulo pra ter amigas. Elas só falam de bonecas, não praticam esportes, não gostam de armas, não gostam de pescar, curtem moto, mas só pra andar na garupa, e preferem carros confortáveis a enormes jipossauros. E têm que cozinhar, cuidar dos filhos e da casa. Não são boa companhia pra sair, tomar umas cachaças e ficar falando de mulheres e filmes de ação.

O problema é que vivemos numa sociedade machista. E a principal constatação dessa nossa sociedade machista é que o sucesso de um homem é medido pelas mulheres que ele é capaz de arrumar. Dinheiro? Você precisa até uma certa quantidade – depois do suficiente pra poder viver sem ter preocupações financeiras, não faz tanta diferença assim. Embora teste de QI não seja tão confiável assim, vários estudos já apontaram que os rendimentos de uma pessoa correspondem ao seu QI até um certo patamar. Depois, começa a cair. É como se a galera mais cabeça achasse que depois dessa barreira, o esforço não vale a pena.

Não, dinheiro é na verdade um indicador que você é um macho atraente. Até o Trump diz isso com todas as letras em sua biografia. O importante não é o dinheiro que você ganha num negócio, o importante é levar a melhor num negócio. O dinheiro é só a medida disso. Não adianta você ter dinheiro e não ser um vencedor. E você só é um vencedor se arrumar a mulher certa.

Essa ideia é tão entranhada em nossa sociedade que as vivemos e experimentamos o tempo todo sem nos darmos conta. Nos filmes e livros, a recompensa do herói é no final conseguir a mocinha, principalmente se for um jovem solitário e incompreendido numa história de fantasia (inclusive se de repente ele for declarado por alguém que chega de repente que ele é o escolhido pralguma coisa, embora nunca tenha demonstrado nenhuma qualidade de liderança). Certa vez, levei uma amiga mexicana minha, punk, feminista, daquelas de me chamar a atenção o tempo todo, pra visitar o Museu Imperial de Petrópolis. Contei-lhe como Pedro II, ultimamente redescoberto como um monarca progressista, o imperador cidadão, o imperador filósofo, manteve o Brasil unido e relativamente estável enquanto a nação se consolidava. Mas, ao ver o busto da Teresa Cristina, ela comentou, rindo, automaticamente, “nossa, a mulher dele era feia”.

Assim se cria um veeeelho paradoxo da nossa sociedade, ultimamente relevado com a chegada da internet. Criamos um monte de garotos e homens que não gostam da companhia de mulheres, mas precisam delas pra garantir respeito. Gente que não gosta verdadeiramente de sexo, mas precisa fazê-lo. Existem milhões de maneiras de se usar seu corpo pra se ter um orgasmo, por várias vias. O que diferencia a relação sexual é justamente a palavra “relação”. No entanto, se usado pra comprar respeito (isso fica pra outra postagem), se torna algo vazio e vago.

Você deve conhecer o tipo. Aquele que só fala de mulher, julga a mulher dos outros, mas quando você aparece no aniversário dele, só tem homem. Aquele que te pergunta como é que você não se entedia viajando sozinho. Aquele que fica contando das conversas no aplicativo de pegação como se tivesse realmente pego alguém. Também são sujeitos que contraintuitivamente gostam de falar mal da promiscuidade da sociedade. O que eles entendem como promiscuidade muitas vezes é só um sexo casual, mesmo daqueles afetuosos, porque eles simplesmente não têm amigas casuais, ou relacionamentos afetivos com gente do outro sexo que não envolvam “quero te comer”.

Isso tudo, obviamente, pra falar do Inominável. Seus filhos estão sempre fazendo postagens acompanhados de outros amigos, varas de pescar, fuzis e afins. Casam-se, mas parecem nunca ter tempo prum programa a dois – sair pra dançar, prum show, pra passar pela cidade. Quem acompanha as viagens e os compromissos do Inominável pode ter a impressão de que ele é casado com o Hélio Lopes. Pelo menos estão sempre almoçando juntos, passeando juntos. Não é de se admirar, Hélio Lopes provavelmente entende mais de pesca, tiro e futebol do que qualquer mulher do clã. E, é claro, não é bom ficar levando a mulher pra passear por aí, pra se arriscar a alguém roubá-la. Vocês devem estar lembrados daquela nebulosa história do buquê de flores do Joesley pra Marcela Temer, envolvendo um avião ou algo parecido. Muito pior do que não arrumar uma mulher atraente é alguém passar a mão nela na sua frente. Aliás, é bom que ela não goste muito de sexo exatamente por isso. Pode querer variedade.

Você pode julgar o Macron. Pode dizer que, se os sexos fossem trocados, todo o mundo ia achar a história esquisita. Mas a graça é justamente que os sexos estão trocados. Ele é que é o homem poderoso. Não é uma jovem menina em busca de fortaleza e proteção como a sociedade diz que ela só vai encontrar em uma figura masculina de autoridade, mais velha e respeitável. E, pelo menos, eles estão sempre juntos. Por mais que seja um recurso publicitário, temos imagens deles de mãos dadas, comparecem a eventos e cerimônias um acompanhando o outro. Parece um relacionamento. Parece um casamento. Parece que o Macron não está entediado por ter que conviver com uma criatura chata pra poder ter seu lugar no mundo. Não parece que ele seja um incel, reclamando da liberdade sexual feminina que faz com que elas não deem pra eles, apesar deles serem legais e bons em videogame. Parece que eles conversam.

Parece que eles vivem, fora de um mundo de ganhar dinheiro e respeito.

agosto 18, 2019

A Antiga Catedral e a Ermida do Ó


Esta semana fiquei sabendo que, durante a restauração da antiga Catedral, ali na Primeiro de Março, tinham desencavado a antiga Ermida do Ó. Assim, munido da minha câmera e minha nova lente, que eu estava doido pra usar, fui visitar o local. Tem um Museu e Sítio Arqueológico, minúsculos, na velha Sé, mas vale a visita. Vai me dizer que nunca viajou e foi visitar uma igreja que mais tarde descobriu ser do século XX e a maior armadilha de turista, sem nada de interessante dentro?

A Ermida do Ó era uma capelinha tosca e simples, como muitas do primevo Rio de Janeiro. As suas ruínas são essas da primeira e da segunda fotos. Ao seu lado foi construído um Hospício e não, não era para alojar os meus amigos de faculdade, mas o nome que se dava na época à Casa dos Romeiros. Quem fazia romaria ou peregrinação ao Rio de Janeiro do século XVI ninguém nunca explicou, mas pelo menos casa pra recebê-los tinha. Talvez justamente pela parcimônia desses fiéis é que quando chegaram na década de 80 uns padres pra fundar a Ordem de São Bento, alojaram eles lá. Logo depois, Manuel de Brito, capitão português que veio pra cá com Estácio de Sá e assim se tornou dono de umas terras, doou-lhes um morro e os beneditinos estão lá até hoje. Aliás, por causa desse Manuel de Brito é que a praia que tinha ali onde hoje é a Praça XV se chamava Praia de D. Manuel e até hoje a rua do Fórum se chama rua D. Manuel.




Realojados os padres, o Hospício logo em seguida recebeu outros. Eram carmelitas, com o mesmo intento de estabelecer sua ordem por aqui. Ofereceram-lhes a princípio um morro, mas eles o acharam ermo e distante. Era o Morro hoje de Santo Antônio (ou o que restou dele). Lembrem-se que naquela época a área da Lapa – Passeio, Carioca e redondezas – era um pantanal, e daqueles malcheirosos. Tanto que abriram uma vala pra drenar aquelas águas e renová-las. Hoje é a rua Uruguaiana e por isso ela é uma das poucas retas daquele tempo.

Os carmelitas gostaram da área onde estavam e conseguiram permissão para construir seu convento ali mesmo, em 1611, começando a construção em 1619, quando receberam permissão da Câmara pra usar as pedras da hoje Ilha das Enxadas, onde fica a Escola Naval, mas que na época não tinha nome e passou a se chamar Ilha de Ruy Vaz Brito porque este foi o governador que concedeu a licença de exploração.

A concessão de terreno mencionava a construção do convento e sua “cerca”. Talvez fosse a paliçada, que está na terceira foto. Na base de pedra, podem se ver os buracos onde ficariam os troncos. Curiosamente, é parecida com aquela de “O Novo Mundo”, do Terence Malick, com as toras espaçadas (se bem que no filme estavam mais pra gravetos do que pra toras). A nossa ideia é que qualquer paliçada seja maciça, como um forte, mas provavelmente eles não estavam esperando ataques de artilharia dos índios (contra quem ela foi provavelmente erigida) e queriam poder ver o que estava acontecendo do outro lado – como, curiosamente, os agentes de imigração disseram que queriam o “muro” pro Trump.



Na época, o mar batia até ali. Frei Vicente de Salvador (1) conta que uma baleia certa feita encalhou em frente ao Convento. Por algum motivo de aquecimento global ou fosse lá o que fosse, ainda no século XVI o mar já estava começando a recuar. E, como era um costume tolerado pelos governantes na época, a área que se formou ali passou a ser extensão daquela dos Carmelitas, que dela se apossaram. Até que em 1683 a Câmara botou o olho naqueles terrenos valorizados e resolveu reparti-los e aforá-los. Os padrecos ficaram furiosos, disseram que iam perder a vista, o ar fresco, que teriam o claustro devassado, enfim, botaram a boca no trombone. E não era de bom tom mexer com os caras – podiam ser monges, mas não do tipo que pensamos. Bagunceiros, irredutíveis, insurretos, tinham por algum motivo uma rivalidade com a Ordem da Misericórdia, que já naquela época possuía o monopólio dos funerais. Quando passava um féretro em frente ao Convento do Carmo, eles desciam de porrete na mão pra tocar o terror, hábito esse que mereceu uma ordem real vinda de Portugal pra acabar. Pra dar mais jeito de Ordem religiosa a eles, mais tarde foi nomeado um interventor, que ficou famoso por sua rigidez, Joaquim José Justiniano. O que foi uma pena, porque provavelmente a Igreja Católica não estaria perdendo tantos fiéis hoje em dia se tivesse guardado esses rituais.

Mas a queixa dos padres desordeiros deu resultado. Conta Vieira Fazenda que lhes foi cedido o direito àquela várzea em frente pelo rei, que para tanto argumentou: os Jesuítas, Beneditinos e Franciscanos ocupam montes e têm fresco em primeira mão; os Carmelitas ficaram na planície e precisam de ar e luz; logo, há toda a razão, e como eles são viventes como os mais, têm direito ao que pedem.”

E tão enfezados eram os capuchinhos daquela época que, quando viram uma pedra fundamental erigida naquele terreno foram lá e arrancaram. As autoridades foram reclamar com eles, que era uma afronta, afinal era um marco real – e um marco real concedendo aquela área aos carmelitas. Os padres disseram que não estavam acima de reconhecer um erro e que a poriam de volta no lugar, o que fizeram.

O atual convento já foi alvo de muitas reformas, o que lhe descaracterizou a fachada. O mais próximo do aspecto original, segundo Vivaldo Coaracy, é a face que dá pra Sete de Setembro, que está na quarta foto. Os carmelitas ficaram instalados no Convento até a chegada da Família Real. Sendo o Paço muito pequeno pro tamanho e pros gostos dos portugueses, eles se adonaram também do edifício ali próximo e foi assim que eles foram sendo empurrados até a Tijuca, na igreja dos Capuchinhos.



Mas antes disso, no século XVIII, eles construíram a atual igreja de Nossa Senhora de Monte do Carmo, a antiga catedral. E como ela se tornou a antiga catedral, com tantas igrejas mais luxuosas, como a Candelária, dando mole? A primeira Sé do Rio, quando ele se tornou uma diocese, foi uma igreja no Morro do Castelo, no século XVII, que, com a mudança da cidade pra várzea e crescimento, foi se tornando cada vez menos frequentada, ainda mais com o templo dos Jesuítas, mais opulento e atraente, ali perto. Quando foi instituída na cidade a Ordem de São Benedito, dos “homens pretos”, foi-lhes concedido alojamento junto à Sé.

Os negros, obviamente, não recebiam um bom tratamento das autoridades eclesiásticas, que muitas vezes os tratavam como provavelmente os viam – seus escravos. Após alguns anos, eles se cansaram, e obtiveram permissão para construir sua própria igreja. Após obtê-la, conseguiram surpreendentemente levantar uma grande quantidade de fundos e construíram a atual Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, aquela branca do lado do camelódromo – a da quinta foto. Mais próxima do Centro da cidade da época, e relativamente monumental, a turma do Bispo logo achou que ali seria um ótimo local para a nova Sé. Principalmente porque as outras irmandades não estavam a fim de receber ordens de estranhos dentro de sua própria casa, e ali era a casa dos negros mesmo.



Então, como num pesadelo, na igreja que eles construíram para se livrar da turma episcopal, logo estava morando a turma episcopal – e torrando a paciência deles novamente. O pessoal da Sé vivia dizendo que ia logo construir um templo, mas foram ficando por quase 80 anos. Mesmo tendo sido designado local pra construção – que passou a se chamar “Largo da Sé Nova” e hoje atende por Largo de São Francisco, eles continuaram aboletados junto aos homens pretos. O que só iria mudar com a chegada da Família Real, também.

A Família Real chegou e ia assistir à primeira missa no Brasil. Deles, não do Brasil. Obviamente seria uma ocasião de gala, cheia de festança e jaez. O povo da Sé mandou avisar aos homens pretos que era pra eles se esconderem, para que os Bragança não se ofendessem com a presença de negros. O que, obviamente, levou-os a se enfileirarem de cada lado da rua do Rosário carregando palmas para saudar o rei. O espetáculo enfureceu tanto o bispado que a Matriz se mudou para a igreja dos carmelitas, que tinha a conveniência pros regentes que era ali do lado mesmo.

A Igreja sofreu várias reformas, e uma recente restauração. A torre direita é do começo do século XX e aquele Cristo (ou santo) realista lá em cima não tem nada a ver com o resto. Pelo menos ainda conserva o frontão que é considerado o mais bonito do Rio. A recente restauração foi a que desencavou a Ermida do Ó. Ela – e a catedral, é claro – estão abertas para visitas, aos sábados, de 9h30m a 12h30m. Seja um bom carioca e vá visitar. Não temos muito monumentos antigos e com história pra apreciar nesta cidade.

O restante das fotos são imagens variadas da igreja, incluindo os restos mortais de Pedro Álvares Cabral, na cripta desde 1903. Esperamos que tenham se divertido e curtido o tour.















P. S.: a última foto é obviamente obra de um pedófilo pervertido do século XVIII.



(1) Escreveu uma história do Brasil, acho que em 1723, e, pela primeira vez, alguém escreve que o problema do Brasil é a mentalidade extrativista – os colonos vinham aqui somente pra extrair o que pudessem, lucrar o que pudessem, e voltar pra casa, sem intenção de construir uma nação ou permanecer. Certos conceitos da nossa terra são mais antigos do que pensamos.