setembro 21, 2006

O Mundo é dos Nerds

Acabei de ver A DAMA NA ÁGUA. Sim, sei que a mensagem, "todos somos especiais e temos um propósito" tem a profundidade de um pires (ou, como o garotinho dOS INCRÍVEIS fala, é a mesma coisa que dizer que ninguém é especial). Sim, sei que é uma elaborada fantasia nerd em que uma mulher gostosa e vulnerável fica sob os cuidados do citado nerd, que mostra toda sua superioridade espiritual ajudando-a e não tentando comê-la (inclusive com frases como "não consigo imaginar que possa vir a liderar; sou tão desajeitada, os outros riem de mim - se isso serve de consolo, também acho a mulher que fala isso desajeitada, só faz merda o tempo inteiro e sem nenhum carisma de liderança). Sim, eu sei que tem um crítico de cinema que é o pior personagem da história e o Shyamalan aparece como o sujeito que vai mudar o mundo - e recebe esse aviso quando está enquadrado no meio de um triângulo que remete inequivocamente à Santíssima Trindade (1).

Mas não é sobre todas essas coisas patéticas que quero falar. É sobre as regras. Devolver a mulher pro mundo dela envolve um monte de regras, lendas e interpretações de sinais. Essas regras não são instintivas e precisam ser explicadas detalhadamente por uma personagem do filme, sendo supostamente um conto de fadas oriental. Talvez seja mesmo, mas soa muito mais a regras de um videogame. Ou melhor, de um RPG. E é sobre isso que queria falar. Filmes, livros, quadrinhos fantásticos estão cada vez mais parecidos com RPGs.

The Matrix II já tinha essa irritante tendência. Os sujeitos que foram adolescentes nerds do final dos anos 80 pra cá estão fazendo filmes e escrevendo livros e roteiros. Adoraram sagas que construíam um mundo próprio como Star Wars e o Senhor dos Anéis (em livro, o pessoal que amou o filme ainda não alcançou a idade pra sua produção artística), já que nerds têm poucos amigos, são desajustados em sua puberdade e fantasiam com mundos onde os valores espirituais teriam maior importância. No meu tempo a gente assistia Jornada nas Estrelas e lia revistas em quadrinhos. Quando Guerra nas Estrelas saiu, eu curti o filme e tal, mas no Brasil não tive acesso à toda a mitologia envolvendo a saga (quadrinhos, livros, brinquedos, naves para montar) e, quando ela chegou ao fim aqui, em 1984, já tinha passado dessa fase (embora tenha gostado do último filme).

Tendo tão pouco material nerd, a gente acabava embarcando na literatura mesmo e meus outros amigos nerds também gostavam muito de ler. Mas hoje em dia a garotada tem acessoa mundos fechados e elaborados na forma dos RPGs, videogames, quadrinhos e seriados de tevê (2). Mas nem todo mundo que escreve essas coisas tem anos de estudo em mitologias que nem o Tolkien, ou se fez assessorar pelo maior mitólogo do século XX, Joseph Campbell, que auxiliou George Lucas em Guerra nas Estrelas. Muito menos a turma que faz videogames. Pouco joguei OS SIMPSONS pra Nintendo porque não tinha paciência de ficar tentando mover todos os objetos que apareciam em cena pra descobrir que se o Bart batesse com o skate numa bola e a jogasse no telhado, ela derrubaria uma lata de tinta roxa sobre um alienígena e o derrotaria. Perceberam a arbitrariedade de tudo isso? A tinta roxa simboliza o quê? Por que diabos eu deveria pensar nisso tudo? Outro detalhe desses, por exemplo, me vem à lembrança no jogo Zelda (o primeirão): um rinoceronte era morto se você acendesse uma vela embaixo dele e fizesse-o passar por cima várias vezes.

Isso até pode funcionar num videogame, embora tenha colaborado para me afastar deles, mas quando se passa a formas de arte menos interativas, em que você não maneja nenhum boneco que move tudo que aparece na tela, é necessário um simbolismo maior. E os autores de hoje em dia não se tocam disso. À medida que foram crescendo, foram acreditando que mais inteligência nesses mundos fantásticos significa mais complexidade e vão estruturando suas fantasias algo aleatoriamente e muito, muito mesmo, apelando para símbolos pessoais e não universais. Seus mundos de regras precisam ser explicados e explicados de novo porque não têm ressonância dentro de nosso subconsciente. Não fazem parte de nosso inconsciente coletivo. Não são ritos de passagem rascunhados como em O SENHOR DOS ANÉIS. Apesar de suas nove horas de duração (não li o livro), a estrutura básica mitológica é extremamente simples. Levei uma amiga na pré-estréia do segundo filme e ela não tinha visto o primeiro. Pouco antes de começar, ela pediu preu explicar a história e o fiz em duas linhas: aquele anãozinho (eu sei que era um hobbitt e que anão era o John Rhys-Meyers) tinha que derreter o anel encantado no vulcão que o criou ou o deus do mal iria usá-lo para destruir o mundo. Agora explica assim tão simples a história de Matrix a partir do segundo filme. Ninguém nunca lembra aquela lei de que criatividade não é inventar o excesso, mas descobrir o óbvio. Guerra nas Estrelas é baseado no rito de passagem em que não se alcança a maturidade sem conseguir livrar-se da figura paterna e dos desejos incestuosos da vida familiar (é por isso que o Darth Vader tem que ser o pai do Luke Skywalker e como isso só aparece no segundo filme e eis aí a prova de que a saga não foi pensada como uma trilogia desde o início).

Outra coisa negativa é que essa profusão de mundos alternativos e fantásticos onde podemos na adolescência buscar refúgio da realidade má e cruel à qual não nos ajustamos está afastando os nerds de seu habitat natural, a literatura. As séries de tevê, por exemplo, descobriram nos anos 90 o mesmo segredo que Stan Lee descobriu na mitologia dos quadrinhos de super-heróis: a incorporação do tempo.

Antes de Stan Lee, como aponta Umberto Eco em Apocalípticos e Integrados, os heróis estavam libertos do tempo. Cada história era independente da outra e como resultado não havia uma mudança do personagem. O Super-Homem que o Otto Binder (acho que era esse o nome) e Mort Weisinger escreviam permaneceu o mesmo durante toda a era de prata. Sim, houve uma história em que apareceu Kandor, outra em que apareceu a Fortaleza da Solidão e outras coisas que foram anexadas à vida do protagonista, mas não havia uma sequência. Durante meses não havia menção a Kandor, ou a Kripto, ou a Brainiac, e depois eles reapareciam. Será que essas histórias sem menção não se passaram na verdade antes? Os supers daquele tempo eram deuses, que não podiam ser atingidos pelo tempo, vivendo em mitologias pouco sofisticadas, afeitas a crianças pequenas, que tinham pouco dinheiro para gastar e não compravam todo mês, nem tinham concentração pra ler muitas páginas. Podiam ser republicadas depois ou lidas anos depois por outras crianças.

Na década de 60, Stan Lee, entre outras coisas, introduziu o tempo. Os supers não eram mais deuses onipotentes, mas heróis trágicos (na devida proporção, é claro). Em quase todos eles sua hybris levou-os a uma punição dos céus (a morte de Bucky, no Capitão América; a morte do tio que o criou, em Homem-Aranha; a sina de ter que viver em parte como um mortal, em Thor). Mas, principalmente, eles envelheciam. Eles sofriam com as consequências de seus atos. E pareciam bem mais vivos. Peter Parker, se tirarmos algumas fases que tiveram muito pouco sucesso de público, é uma criação incrivelmente coerente, já que escrito por diversos autores durante quarenta anos. De nerd solitário que achava que jamais teria uma namorada a seus primeiros amigos, namoros, início de vida sexual e amadurecimento (como é incrivelmente bem bolada a amizade que ele acabou tendo com seu arqui-inimigo Flash Thompson; pena que John Byrne, já na decadência, tenha acabado com isso).

Os supers da Marvel também interagiam entre si com muito mais frequência do que na DC, onde os heróis, exceto nas revistas da Liga da Justiça e na dupla Batman-Super-Homem, pareciam habitar mundos estanques. A Marvel criou toda uma mitologia, não para cada herói separado, mas para todos. "Universo Marvel" era mais do que uma simples expressão. Havia a onipresente Shield; Tony Stark desenhava armas para o Capitão América (circuitos no escudo que depois ele tirou); em suma, era um mundo palpável onde o nerd podia se refugiar. A qualidade dos roteiros melhorou muito, uma vez que, não confinados a um certo número de páginas de um único número, podiam se desenvolver com mais ritmo, mais diálogos do que o necessário para exposição e tempo para desenvolvimento das personalidades e dos coadjuvantes. As crianças continuaram lendo esses gibis enquanto cresciam e logo adolescentes e jovens adultos estavam firmemente estabelecidos como público de quadrinhos. E quando eles atingiram a idade para trabalharem para as editoras, sabiam qual era o grande atrativo. E investiram fundo nisso.

A partir de "Guerras Secretas", no começo dos anos 80, começaram as mega-sagas, em que uma única história se desenrolava em TODAS as revistas de uma editora. O sonho de todo nerd. As vendas dispararam. Mas como nas tragédias gregas, havia um preço a pagar. Os universos foram ficando cada vez mais complicados. Drásticas mudanças eram feitas quase todo mês nas vidas dos personagens puramente pelo efeito chocante, para aumentar as vendas, apenas para serem desfeitas três meses depois; foi a época da morte do Super-Homem, do aleijamento do Batman, da morte de um X-Man em quase toda revista. O público foi se tornando insensível. Além disso, as histórias haviam se tornado tão complicadas que era difícil arrebanhar novos leitores. Quem comprasse ocasionalmente um número da revista simplesmente não entendia nada do que estava acontecendo.

Os seriados de tevê descobriram isso mais ou menos nos anos 90. O primeiro que eu me lembro a introduzir o tempo foi A GATA E O RATO, em que a tensão sexual entre protagonistas de sexo diferente, pela primeira vez que eu me lembre, chegou ao fim. E virou gancho de praticamente todo programa, de FRIENDS a BATTLESTAR GALACTICA. E é claro que as histórias de ficção científica pularam nisso açodadamente. Compare a estrutura "um episódio, uma história completa" de A NOVA GERAÇÃO com a complicadíssima trama de DEEP SPACE NINE ou mesmo VOYAGER. Eu mesmo nunca tive saco para acompanhar ou tentar entender aquela confusão toda. Seguiram-se 4400, LOST e outras.

Isso, é claro, afasta o público nerd dos livros. Eles têm RPGs, videogames e seriados de tevê onde afogar suas mágoas. Muitos desses mundos são criações artificiais e sem ressonância cultural ou mitológica, mas funciona com eles porque eles estão viciados em universos fantásticos com suas regras próprias. E dispensam literatura. Num ótimo site sobre quadrinhos feito por grandes nerds, sou obrigado a ouvir que Superman - O Retorno é talvez o melhor filme do ano, ou que Constantine (que é um barato) é uma porcaria porque não tem a cínica poesia do original de Garth Ennis. Por favor, meus amigos, vão ler Céline antes de exaltar o cinismo de uma história em quadrinhos. Até mesmo um sujeito culto como o crítico Rodrigo Fonseca não consegue trair suas raízes nerd e diz que A DAMA NA ÁGUA é a melhor fita do ano.

Menos, nerds, menos. Aproveitem que estão por cima e façam as pazes com o mundo. Cresçam como o Peter Parker. Não ajustem suas contas mesquinhamente como o Shyamalan faz com o crítico de cinema em seu filme. Vocês sabem que se continuarem dando esse mole todo, os malhadores vão aparecer e dar porrada em vocês.

(1) Os outros diretores que apareceram em seus filmes como salvadores do mundo não tiveram bom fim. Abel Gance - o da indiscutível obra-prima NAPOLEON - faz um messias que acaba crucificado (!!!) em La Fin du Monde e esse filme praticamente acabou com sua carreira (eu não vi, mas tem uma orgia que foi dirigida assim - ele convidou o pessoal boêmio e que fazia teatro da época, falou pra todo mundo tirar a roupa e conversar e, quando o inevitável aconteceu, saiu filmando. Diz que é a melhor coisa do filme). Pasolini põe sua própria mãe como Maria mãe de Jesus em O EVANGELHO SEGUNDO MATEUS e morreu assassinado por um garoto de programa a marretadas. Mas eles, pelo menos, ao contrário do Shyamalan, já tinham brindado o mundo com os geniais já citados NAPOLEON e EVANGELHO SEGUNDO MATEUS.

(2) As séries de tevê, na verdade, estão se tornando cada vez mais indistinguíveis do cinema. São dirigidos iguais e têm os mesmos atores. Nos anos 70 isso já acontecia, mas o fato dos filmes serem destinados a público mais adulto, além da maior censura na tevê, garantia que na tela grande você encontraria uma temática mais madura, veria mulher pelada - puxa, a gente via peitinho em quase qualquer filme que não fosse para toda família - e afins. Hoje em dia o filme para adultos é quase inexistente em Hollywood. TAXI DRIVER e O PODEROSO CHEFÃO dificilmente seriam financiados por estúdios.
Pra ilustrar como era a censura na tevê nos anos 70/80: a série original Battlestar Galactica deveria ter, como inimigos dos humanos, répteis abjetos, mas eles foram mudados para robôs abjetos, os cylons, porque a rede de tevê determinava que só podia haver certo número de mortes por hora e, tecnicamente, robôs sendo destruídos por lasers não eram mortes.

setembro 14, 2006

Do roteiro A ETERNIDADE NUM BEIJO

Um homem está sentado numa cadeira, de frente para a câmera. Ele é o protagonista, Renato e se veste como os rebeldes dos anos 50, de calça jeans, jaqueta de couro e camiseta branca, denotando que ele é um romântico e algo anacrônico. Os espectadores não têm a menor idéia ainda do que está acontecendo, pode ser uma sessão de análise, um interrogatório, um papo num bar, qualquer coisa do gênero.

Conselheiro 1: (OFF) E o amor?

Conselheiro 2: (OFF) Você ainda guarda sentimentos por Ana?

O homem pensa um pouco, está nervoso.

Renato: Guardar?

Conselheiro 2: (OFF, VOZ ENFASTIADA) Sim, guarda, ainda guarda sentimentos por ela?

Renato: Sentimentos por Ana? Guardar? Não. Não guardo. Por que guardaria? Já não nos vemos há tanto tempo... (PÁRA UM POUCO PARA PENSAR)

A voz em off de Renato narra cenas de Ana, flashbacks em close de seu rosto, sorrindo, fazendo diversas expressões, e de detalhes de seu corpo, como se ele a estivesse vendo bem de perto. No fim do monólogo, o rosto de Renato volta à cena, em fusão. Ela perece ter saído direto dos anos 60. Usa vestidos curtos, longos cílios, cabelo cheio e franja.

Renato: Eu acho. Eu não sei. Quanto tempo será que já faz? Difícil dizer. Parece que foi ontem. Talvez tenha sido ontem. Não me lembro quando foi. Mas me lembro que pareceu muito. Um tempo enorme. Muito maior do que havia que antes de eu conhecê-la. Muito maior do que o que se passou desde então. Por mais que os ponteiros do relógio se repitam na mesma posição, em cada hora de cada dia desde que nos separamos, ainda assim o tempo que passamos juntos foi maior do que possa vir a ser qualquer dos mais longos dias que eu venho enfrentando sem ela. Guardar sentimentos por ela? Por que o faria? Tantos anos eu vivi sem sentir algo assim, tantos anos eu tentei sentir algo assim, me agarrando a outras mulheres, tantas por tantas razões menos a certa. Menos aquela que eu queria ter, sentir em mim, sentir nela, e tanto eu fiz, tanto eu me fiz fazer, tanto eu me iludi, finalmente descobri Ana, há tanto tempo, como podemos saber agora, se é que eu posso chamar o agora de agora. Depois da Ana tudo foi só um longo depois. Não, eu não guardo, não guardaria, jamais guardaria, como poderia eu fazer isso, com aquela sensação, o primeiro beijo com seu gosto de alucinação, miragem, ilusão, a primeira vez em que a vi nua, quando Deus criou você deitada nua na cama, ele sabia o que estava fazendo e criou o fogo, a água e as montanhas ao mesmo tempo, a primeira vez em que a senti por dentro, macia, morna e água, a vida toda vem da água, a vida toda vem de você, a vida toda vem de dentro de você, como guardar, jamais guardar, não há o que guardar, não se tem o que guardar, Ana foi o agora, Ana foi o então, o resto, o resto é só depois, o resto é só o que veio depois, o resto é silêncio (PAUSA). Não (PAUSA, MUDA O TOM). Não guardo nenhum sentimento por Ana.

Detalhe de um lápis vermelho riscando alguma coisa. A câmera abre e revela finalmente que estamos numa comissão de exame de condicional, que nem aquelas que vemos em filmes americanos, uma sala cheia de arquivos, cadeiras escolares, um quadro-negro, com os conselheiros de guarda-pó e óculos fazendo enormes riscos visivelmente desaprovadores em seus formulários e cochichando entre eles. Um deles se levanta.

Conselheiro 1: Sr. Renato, na opinião do presidente desta comissão de avaliação, o senhor nada aprendeu no seu tempo de encarceramento sobre o que o trouxe a esta instituição e sobre os erros de seus atos. Minha decisão é de que o senhor deveria permanecer interno e sua condicional ser negada. Entretanto, como o senhor foi o último a ser ouvido hoje e sua exposição foi longa demais, meu relatório só será encaminhado amanhã, quando estarei já trabalhando em outra coisa e lugar e meu voto nada mais valerá. Portanto, não me darei ao trabalho de redigir um parecer contrário sobre seu caso. Boa sorte.

O Conselheiro 1 sai da sala, tirando o guarda-pó e os óculos, exibindo uma roupa de piloto de Fórmula 1.
Levanta-se outro conselheiro.

Conselheiro 2: Sr. Renato, não houve evolução em seu quadro. O senhor está apegado a esta mulher. Demonstra falta de espírito. Falta de fibra. Falta de vontade de conhecer o amanhã que está sempre vindo. Veja como eu não tenho medo de encarar o futuro.

O Conselheiro 2 arranca o guarda-pó, os óculos, e pula através da janela.
Levanta-se o terceiro e último conselheiro.

Conselheiro 3: Sr. Renato, na verdade eu queria mesmo era ser músico. Eu tinha uma banda emo. Há muito tempo. Eu acho. Quando começou. Eu acho. Eu concordo com o senhor. Eu acho. Inclusive eles dois não sabiam, mas parece que vai haver uma mudança de orientação, para valorizarmos mais os sentimentos. Eu acho. Acho que o senhor está liberado.

Renato: Estou?

Conselheiro 3: Está. (REFERINDO-SE AOS CONSELHEIROS) Eles também. Já até foram. Só eu que ainda vou permanecer aqui. Mais uns dias. Eu acho. Pouco tempo, de qualquer forma, eu acho. Vai parecer mais. Eu queria minha banda emo.

Renato: Os ritmos brasileiros estão voltando à moda.

Conselheiro 3: Amanhã eles caem no ostracismo de novo. Ostracismo é uma palavra bonita, não? Sonora.

Renato levanta-se para sair.

Renato: Acho que prefiro olvido.

Conselheiro 3: Eu gosto muito do ouvido. Eu queria ser músico. Eu lhe disse, não?

A Singularidade Antes do Momento Zero

O momento mais mágico não é a consumação da paixão, mas a regozijosa antecipação quando um amor está para começar. Quando ela já demonstrou o interesse, ligou para marcar o encontro, ligou para avisar que vai à sua casa, que quer jantar, que quer sair e tomar um chope, aquela mulher maravilhosa e tão atraente. O dia de Sol se torna mais morno, manso e brilhante, as pessoas todas exibindo contentamento e felicidade em seu rosto à sua volta. A magia antes de tudo começar. O encontro pode dar errado, ela pode sair chorando ao lembrar do ex-namorado ou do parente que morreu por causa de algo que você falou, mas enquanto há apenas a suave espera sem ansiedade, há apenas todas as perspectivas que podem ser realizadas, toda a pele que pode ser sabida, recendente e resplandescente, enquanto os momentos escoam tranquilamente até o momento de chegada só se conhece a vitória prestes a ser concretizada, saboreada, aproveitada; se for um dia de chuva, é aquela que fertiliza os campos e umedece os corpos, faz a roupa colar às formas e lambe os poros enquanto as bocas também se lambem e molham.
O momento zero, o momento tão esperado, o momento em que o celular esquecido acusou que ela ligou, deixou um recado, para um encontro, para um choque, para um confronto. O chão carrega fácil os passos e os ponteiros de relógios. A noite é quente e estrelada, mesmo que por detrás de nuvens como cortinas do Metro Boavista, guardando a tela onde se escreverá o drama, a paixão e a comédia. O morno calor da certeza de que ela vai chamar novamente, de que ela aparecerá novamente, de que ela olhará nos olhos e sorrirá de novo como na primeira vez.
Não havia tempo antes do Big Bang, do instante zero. Havia apenas uma singularidade. Porque como não havia tempo, não havia o espaço e nem as leis da física. Não havia o que ser medido, não havia como ser medido, não havia com o que se medir. Como a história que vai começar. A história de amor. O Universo. Um novo Universo em cada singularidade. Um novo amor a cada espera. Deliciosa espera.

setembro 12, 2006

O Diabo é o Pai do Rock

Esquete de 1993

Uma faixa está pendurada, no alto, onde está escrito "ALMARE - Centro de ginástica psíquica". uma mulher, de malha de ginástica e capa dá aula para dois alunos, que saltitam. nO CANTO, HÁ UMA MESA COM UMA CADEIRA ATRÁS.

professora

Levitando... deslevitando... levitando... deslevitando... (APONTA PARA UM DOS ALUNOS) Você aí... pare de fazer corpo mole!

aluna

Eu, mestra?

professora

Você mesma... Venha para cá! Vai pagar 50 meditações!

A aluna se aproxima. a professora a olha, com raiva.

professora

Vamos! Posição de Lótus! O que está esperando?

aluna

(SENTANDO-SE) Mas, mestra...

professora

Um!

aluna

Ôôôôôn!

professora

Dois!

Aluna

Ôôôôôôn!

E a professora segue contando e a aluna, sentada, em posição de lótus, encarando o vazio, fica falando "Ôôôn" a cada número. Entra o policial.

policial

Boa tarde... meu nome é inspetor Carvalho... eu queria falar com Pedro Lebre.

professora

(PARA A TURMA) Muito bem, gente... aula encerrada! Bem, vou chamá-lo, Inspetor.

Os alunos e a professora saem. O inspetor espera um pouco, andando de um lado para o outro. Entra o misterioso pedre lebre.

pedro lebre

Inspetor? Eu sou Pedro Lebre.

POLICIAL

Inspetor Carvalho. Eu sou seu fã, sr. Pedro Lebre. Li todos os seus livros. Agenda de um Bruxo. O Hermeneuta. As Valérias. Selim.

Apertam as mãos. cartas de baralho caem das mangas de pedro lebre o tempo todo. pedro lebre senta-se atrás da mesa. o inspetor fica em pé.

pedro lebre

Sente-se, Inspetor.

policial

Er... não há outra cadeira...

pedro lebre

Não tem problema. (PEGA SUA CADEIRA E A DÁ PARA O INSPETOR, MAS CONTINUA SENTADO. POMBAS SAEM DE SUA CAPA) Eu fico levitando.

policial

(SENTANDO-SE) Temos um caso estranho nas mãos, sr. Lebre... e, embora seja altamente irregular, achei que somente um ocultista poderia lançar alguma luz no caso... (PEGA UM ENVELOPE PARDO NO PALETÓ E O ENTREGA A LEBRE) Veja estas fotos...

pedro lebre

(PEGA O ENVELOPE E O ENCOSTA NA TESTA, FECHADO. CONCENTRA-SE) Hm... uma comunidade pacífica e paradisíaca... estranhas criaturas peludas chegam... ingerem misteriosas poções e entoam cânticos incompreensíveis... tentando capturar donzelas indefesas...

policial

Oh, desculpe... essas são as fotos do meu filho e os amigos em Búzios... (PEGA OUTRO ENVELOPE E O ENTREGA A LEBRE) São essas as fotos que eu queria que o senhor visse...

pedro lebre

(ENCOSTANDO O ENVELOPE NA TESTA) O Museu Imperial... um vigia morto... uma redoma de vidro quebrada... houve um assalto no Museu Imperial... o que levaram, inspetor?

policial

Aí é que está o busílis, sr. Lebre. Não levaram nada de valor... apenas uma estatueta oriunda das Ilhas Swapho.

pedro lebre

(ASSUSTADO) O quê? Uma estatueta das Ilhas Swapho? E houve outros roubos como esse?

policial

Sim... um colecionador particular nos comunicou o roubo de um ídolo inca...

pedro lebre

Oh, não! A estatueta de Swaphoili e o Fetiche Arumbaia! A coisa é pior do que eu pensava!

policial

Você sabe o que está acontecendo? Quem foi o ladrão?

pedro lebre

Forças terríveis podem ser desencadeadas... mas para saber quem foi, terei que contactar... o homem gordo! (PEGA O TELEFONE E DISCA) Alô? É do Bar Místicos & Esotéricos? Eu queria falar com o Homem Gordo.

homem gordo

(OFF) É ele quem está falando...

pedro lebre

Aqui é Pedro Lebre... eu preciso de algumas informações sobre o roubo da Estatuteta de Swaphoili e do Fetiche Arumbaia...

Enquanto os dois falam, o policial pega o fio do telefone, vê que não está ligado a lugar nenhum e olha estranhamente para pedro lebre.

homem gordo

(OFF) Não pelo telefone... venha até aqui... (SINISTRO) Ha, ha, ha. (DESLIGA)

policial

O telefone não está ligado em lugar nenhum...

pedro lebre

Telepatia celular... vamos, temos que ir até o Místicos & Esotéricos.

os dois saem. o palco é arrumado para ser um bar. uma porteira toma conta da entrada. lebre e carvalho aparecem e a porteira os barra.

porteira

Qual é a senha?

pedro lebre

Olhe bem nos meus olhos... você está sob meu poder... você é uma galinha... você é uma galinha? Compreende?

porteira

Sim, mestre.

pedro lebre

Então me diga... quem você é?

porteira

Meu nome é Ailime... eu sou modelo e atriz.

policial

Meu Deus! Funcionou!

pedro lebre

Vamos entrar.

Os dois entram. encontram uma mulher magra sentada na mesa. lebre dirige-se a ela.

pedro lebre

Queríamos falar com o Homem Gordo.

mulher magra

Sou eu.

policial

Mas você é mulher e magra!

mulher magra

Estou disfarçado. Temos que ser discretos. Metade deste bar tem um terceiro olho. (PAUSA. VÊ OS OLHARES DE DESAPROVAÇÃO DE LEBRE E CARVALHO) Na testa. Místico, entende? Visão da alma, saca? Tudo bem. Lembrem-se de falar em código. Querem alguma coisa?

pedro lebre

Antenor Mayrink Veiga.

mulher magra

Ah, já comeram muito e querem descansar um pouco. Tudo bem. (ESTALA OS DEDOS. UMA REFEIÇÃO VEM VOANDO NA DIREÇÃO DELE) O que vocês querem saber?

pedro lebre

O que você sabe sobre o roubo da estatueta Swaphoili e do fetiche Arumbaia?

mulher magra

Trouxe os objetos de poder para mim?

policial

Objetos de poder?

Mulher magra

Sim... artefatos raros e antigos... de quando a humanidade era jovem e inocente.

pedro lebre

Aqui estão eles... (VAI ENTREGANDO À MULHER MAGRA) Uma faixa do Fluminense campeão... um disco de ouro do RPM... um ingresso para a Mamão com Açúcar... e aqui... o objeto mais difícil da minha coleção... um neurônio de Júnior Baiano!

policial

(CURIOSO) Artefatos bem antigos.... (À MULHER MAGRA)

pedro lebre

Diga-nos o que queremos saber.

mulher magra

Dizem por aí que no Cemitério das Almas Perdidas, um homem está reunindo poder...

policial

(AFLITO) Quem?

Enquanto eles conversam, a faca da refeição da mulher magra começa a levitar. Pedro lebre se levanta repentinamente, gritando:

pedro lebre

Cuidado, uma faca!

A mulher magra se desvia da faca. O policial se abaixa. pedro lebre começa a fazer gestos hipnóticos para a faca.

pedro lebre

Eu cuido disso! Você é um cavalo! Você é um cavalo!

faca

Eu sou o Edmundo... eu sou o Edmundo!

policial

Meu Deus! Funcionou!

mulher magra

(LEVANTANDO-SE) Vamos! Por aqui!

os dois seguem a mulher magra, mas são atacados por outros objetos levitantes.

pedro lebre

Cuidado! Um copo!

Eles se desviam do copo.

pedro lebre

Cuidado! Uma Crush de casco escuro!

Eles se desviam da crush de casco escuro.

pedro lebre

Cuidado! Um exemplar autografado deEu Nua - a autobiografia de Odete Lara!

Eles se desviam do LIVRO autografado de ODETE LARA, mas, quando estão prestes a alcançar a saída, pedro lebre grita apavorado:

PEDRO LEBRE

Batatas Fritas!

Batatas fritas são ridiculamente atiradas sobre a mulher magra, que urra de dor quando elas a atingem e cai ao chão, gritando, enquanto luta desesperadamente com elas. carvalho tenta ajudar, mas lebre o puxa.

pedro lebre

Não há nada a fazer por ele...

policial

Você quer dizer...

pedro lebre

Sim... ele está frito. Vamos embora... temos um encontro marcado com o Destino no Cemitério das Almas Perdidas... e que o eterno Vishanti nos proteja!

saem. escurece. as mesas são levantadas e viram lápides. clareia. Lebre e carvalho entram.

pedro lebre

(OLHANDO AS LÁPIDES) Sic Transit Gloria Mundi... veja todos estes túmulos... Paulo Ricardo... Giovanni e Marcelinho Carioca... Teatro Besteirol... quão vã é a glória humana...

policial

Tem idéia do que pode acontecer aqui?

pedro lebre

Os artefatos roubados possuem forças capazes de levantar os mortos... temos que evitar que eles sejam usados, a todo custo...

policial

E sabe quem pode estar por trás disto?

pedro Lebre

Desconfio... e rogo para que esteja enganado... atenção eles vêm vindo! Os disfarces!

Os dois põem copas de abajur na cabeça e ficam inteiramente eretos. Entram figuras envoltas em sinistros mantos, cujos capuzes cobrem os rostos. Eles traçam um pentagrama e colocam a estatueta swaphoili e o fetiche arumbaia dentro do pentagrama. Acendem velas nas pontas da estrela. De repente, um deles nota nossos heróis. O Líder fala com ele.

líder

O que tanto olha, número dois?

número 2

Estes abajures... há algo de estranho com eles.

líder

É que estão apagados... acende pra gente desenhar melhor o pentagrama.

O Número 2 gira em torno deles, observando-os bem.

número 2

Não acho o interruptor...

líder

Deve estar debaixo da copa. Procura ali.

O Número 2 levanta a copa de pedro lebre e olha estranhando para a cara dele. Pedro lebre pega uma lâmpada no bolso e tenta esconder o rosto atrás dela. Os outros estão ocupados, de costas.

número 2

Você não é um abajur!

pedro lebre

Olhe bem nos meus olhos... sua voz não sai... ninguém pode ouvi-lo... nenhum ser humano pode compreender o que diz!

número 2

(A VOZ VAI SUMINDO) Sim, mestre... eu sou João Gilberto... eu sou João Gilberto...

líder

E então? Cadê a luz?

número 2

(FALANDO MUITO BAIXINHO E AFINADO) Eles não são abajures!

líder

Como é? Cadê a luz?

número 2

Desliga o ar condicionado! (PUTO) Ah! Vou embora! Chega! (SAI)

número 3

Ué... que bicho o mordeu?

líder

Vamos... temos que começar a invocação.

pedro Lebre

(TIRANDO O DISFARCE) Pare! Não mexa com essas forças do Mal!

número 3

Pedro Lebre! (INVESTE CONTRA ELE, MAS PEDRO LEBRE O AFASTA COM UM GESTO HIPNÓTICO E ELE CAI, DESMAIADO)

pedro lebre

(ANDANDO ATÉ O LÍDER) Sua trilha de sangue termina aqui... vamos, entregue-se!

líder

Ha! Com quem você pensa que está lidando? Eu sou o Mestre das Forças Místicas! Em nome do terrível Dormammu da Dimensão Negra, invoco meu exército de fantasmas!

Vários paletós vêm flutuando e cercam pedro lebre e o policial que TIRARA O DISFARCE E observava a cena.

policial

Que fantasmas são esses?

pedro lebre

Funcionários Fantasmas. Eles não farão nada a não ser que você faça alguma coisa...

líder

Sim... mas vocês não têm como escapar...

policial

Quem é você, afinal? O que deseja? Por que matou o vigia do museu? Quais são os seus planos?

líder

(TIRANDO O CAPUZ LENTA E SOTURNAMENTE. SORRI) Creio que seu companheiro sabe muito bem quem sou...

pedro lebre

Meu antigo parceiro e companheiro... Saul Seixos!

policial

Mas Saul Seixos está morto!

líder

Era o que eu queria que pensassem... ninguém me chamava mais para fazer shows... as gravadoras não queriam papo comigo... chamavam-me todos de louco... pois então resolvi realmente ser louco! Simular minha morte foi apenas a primeira parte do plano! Bastou dizer que foi cirrose que todos acreditaram... e, como eu pensava, as vendas de meus discos e até de meus livros dispararam! A Sociedade só pode suportar gênios mortos! Veja Elvis Presley! Jim Morrisson! John Lennon! Foi assim que eu consegui os fundos para consumar minha vingança!

pedro lebre

Sua vingança? Mas você já se vingou! Você está rico, seu talento foi reconhecido! E conjuntos oportunistas cover assombram as casas de show torturando os que não quiseram conhecê-lo enquanto vivo! O que mais deseja?

líder

O que mais? Ha! Às vezes você me pergunta... ha... perguntas não vão lhe mostrar... eu falei de Elvis Presley, não? Pois bem, este é o meu plano! Com a ajuda destes artefatos, eu irei ressuscitar Elvis... e nos lançaremos como uma dupla sertaneja! Invocarei forças infernais para fazermos sucesso... e lançaremos uma música atrás da outra! O mundo ficará soterrado sob toneladas de música sertaneja! Mais e mais música sertaneja! Dos recusados, Elvis e Saulzito! Percebe a ironia? Tanta música sertaneja que todos perderão o ouvido para a música... e tudo isto vindo daqueles que poderiam ter apurado o gosto musical de toda a humanidade!

pedro lebre

Você está louco, Saul... deixe-me ajudá-lo... (MEXE ESTRANHAMENTE DENTRO DA CAPA)

líder

Louco, eu? Eu? Eu estou muito além destes julgamentos morais! Eu sou o Início, o Fim e o Meio! A Mosca que caiu na sua sopa! Eu transformo água em vinho, chão em céu, pau em pedra e cuspe em mel! E vocês não têm como me deter! HAHAHAHAHA! (VIRA-SE PARA OS ARTEFATOS MÍSTICOS) Em nome de Oshtur e Cyttorak, eu vos invoco, Senhor das Trevas... (VAI FALANDO PALAVRAS MÁGICAS)

policial

Vamos ficar só assistindo? Se são funcionários fantasmas, talvez possamos afastá-los com alguns cargos gratificados...

pedro lebre

Não! Deixe-o! Ele não sabe com o que está lidando! Vamos ficar aqui!

policial

Mas temos de fazer alguma coisa!

pedro lebre

(CONTENDO-O) Não! Fique quieto! Apenas feche os olhos! Não olhe! Não olhe!

líder

(TERMINANDO A INVOCAÇÃO) Magnus Maximus Agnus ego invocabur ROLLOC!

PEDRO LEBRE VIRA-SE DE COSTAS PARA SAUL E PROTEGE O POLICIAL COM SUA CAPA. SAUL RI LOUCAMENTE, OLHANDO PARA FORA DE CENA.

LÍDER

Sim! Venha para mim! Venha! Você é meu... espere... (ASSUSTANDO-SE) O que está fazendo? Pare! Eu sou seu mestre! Pare, eu ordeno! Pare, você não pode me desobedecer! Não! Não! Nãããããããããããããããããããããããããããoooooooooooooooo!!!!!!!!!!!!!!!!

Uma ridícula mão picareta enorme e peluda pega saul pelo pescoço e o leva enquanto ele grita "não, não!". há um estrondo. Escurece e clareia novamente. pedro lebre olha para trás e tira a capa da frente do policial.

PEDRO LEBRE

Está tudo bem agora... pode olhar...

policial

O que... o que aconteceu?

pedro lebre

Ele foi levado pelo demônio que pretendia escravizar. Ele não devia ter nos revelado seu plano. Enquanto ele falava, eu liguei meu aparelho de telepatia celular... (TIRA DO BOLSO O TELEFONE E O MOSTRA A CARVALHO) e disquei para as profundezas infernais...

policial

Mas... de que isso adiantou?

pedro lebre

Ele pretendia primeiro escravizar o demônio... para depois forçá-lo a seguir suas ordens... mas o demônio foi mais esperto e o pegou primeiro... você sabe como são os demônios, eles não fazem nada que vá contra sua natureza...

policial

Mas... por quê? Se o seu plano funcionasse, ele ia acabar com o bom gosto da humanidade... seria terrível, terrível... como alguém poderia pensar cercado de música sertaneja por todos os lados? O mundo viraria um caos, uma balbúrdia! O que faria um demônio rejeitar um plano desses?

pedro lebre

(ANDANDO ALTIVO ATÉ OS ÍDOLOS E RECOLHENDO-OS) Música sertaneja, meu caro. A música sertaneja era a chave...

policial

Ainda não compreendi...

pedro lebre

(CAMINHANDO ATÉ O NÚMERO 3 E LEVANTANDO-O) Ele esqueceu um ponto fundamental... pobre Saul... estava obcecado por vingança...

policial

(IRRITADO) O que ele esqueceu, afinal? O quê?

pedro lebre

Ele queria entupir o mundo com música sertaneja, meu caro... (DEIXA O NÚMERO 3 COM O POLICIAL) e esqueceu que... (VAI SAINDO) ... todo pai cuida bem de seu filho... e... (SAI. FALA EM OFF) O Diabo... é o pai do Rock!

A Blitzkrieg Alemã

Em 1939, a Alemanha de Hitler, muito menos armada do que a lenda faz acreditar, fez um arrastão na Europa, atropelando todos os exércitos que via pela frente, alguns deles com ampla superioridade numérica e outros com mais e melhores armas. Por três anos, a Wermacht fez milhões de prisioneiros, assenhoreou-se de dezenas de países e destroçou exércitos e reputações, até os generais adversários descobrirem que podiam usar o mesmo conceito contra os alemães - e se você acha que três anos é tempo demais para se chegar a esta conclusão, precisa ver o que as maiores inteligências militares do planeta fizeram durante a Primeira Guerra, de 1914 a 1918. Este conceito era a blitzkrieg - a guerra-relâmpago.
Enquanto os generais aliados, vencedores em 1918, prepararam-se para lutar na década de 1940 a mesma guerra outra vez, fazendo planos para uma espécie de Grande Guerra 2 - Desta Vez é Pessoal, os alemães, reconstruindo um exército praticamente abolido quando da assinatura do tratado de paz, criaram um conceito de combate muito mais avançado, em que uma vanguarda móvel, protegida por blindagem - tanques - apoiada por aviões e infantes motorizados levava o som e a fúria através das linhas inimigas, semeando o caos e a confusão. Après moi, le déluge. Contado assim, não parece nada revolucionário, o segredo está nas sutilezas e na forma pela qual o poderio industrial - as máquinas e motores - não eram usados. Além disso, surgindo numa época e continente que passaram mais de quinhentos anos aperfeiçoando a luta a pé, com fileiras cerradas de soldados avançando lentamente lado a lado e que valorizava como principal instrumento da vitória a disposição do sujeito em atravessar centenas de metros debaixo de balas bem empertigado, tendo como uma única proteção um tecido de cores berrantes e espalhafatosas e, se possível, cantando o hino do regimento (que, pelo jeito da coisa, devia ser algo como "atire em mim... atire em mim... atire em mim").
Para entender perfeitamente o impacto dessa forma de lutar, é preciso recuar para cem anos antes. Por volta de 1850, o campo de batalha ainda era dominado pelas mesmas armas do começo da era da pólvora. Os canhões eram pesados tubos de bronze sobre carretas de madeira, que pulavam assustados para trás com cada disparo. Os infantes portavam mosquetes que funcionavam pelo mesmo princípio. Para cada tiro devia se limpar o cano, derramar pólvora para impulsionar a bala, socá-la, pôr a bala, socá-la também e encher um pequeno compartimento com mais um pouco de pólvora. Uma mecha, nos canhões e uma cápsula, nos fuzis, ateava fogo neste punhado de pólvora, que levava a chama até aquela no cano e a inflamava explosivamente, impelindo o projétil. Depois disso tudo, no caso da artilharia, os soldados ainda teriam que empurrar a carreta de volta à sua posição original, dado o recuo. Já um bom atirador, muito bem treinado, daria três tiros por minuto. Em pé, pois precisava derramar tudo para o tiro pela boca da arma.
Com esse mecanismo de disparo, a bala partia cerca de um segundo depois de pressionado o gatilho. Não havia mira, os soldados eram treinados a apontar diretamente para a sua frente, na massa compacta de inimigos que avançavam ombro-a-ombro. Os atacantes alcançavam os defensores no intervalo da recarga e lutavam corpo-a-corpo. Tendo que atirar em pé, defensores e atacantes se encotravam em campo aberto. Em se tirando a substituição de batalhões de mercenários por exércitos nacionais de soldados-cidadãos, consequência da Revolução Francesa, a luta se desenvolvia como no século XVII e as armas que dominavam o campo de batalha eram a artilharia e a baioneta, aquela lâmina que se atarraxava na boca do cano dos mosquetes, mais leves, precisos e que já haviam perdido o péssimo hábito de explodir na cara dos atiradores, mas ainda longe de aproveitarem tudo que a Revolução Industrial pusera à disposição. O primero sinal de que o tempo ia fechar foi a invenção da bala Minié.
A bala Minié, inventada por um oficial francês chamado - dã - Minié, tinha um formato tal que se achatava na hora do disparo, dilatando-se para os lados, o que a fazia encaixar-se em pequenos canais no cano - as estrias. Estas, em espiral, faziam o projétil girar e davam um alcance e precisão anteriormente somente à disposição dos batalhões de Caçadores, que sabiam como forçar balas em canos estriados sem destruir nenhum dois dois. Qualquer um a quatrocentos metros de um infante armado passou a ser um alvo móvel. Na Guerra Civil Americana, um franco-atirador confederado matou a setecentos e trinta metros de distância um general ianque que havia se posto de pé na trincheira a gritar "dessa distância não acertaríeis sequer um elefante". A seguir, veio o rifle de carga pela culatra.
Podendo enfiar a bala por trás do cano, o soldado podia atirar deitado. Qualquer vala podia proteger um homem. Os primeiros desses fuzis usavam cartuchos de papel e percussores de agulha, o que os limitava a um disparo por vez, mas logo em seguida foi adotado o cartucho metálico de latão e o mundo finalmente conheceu os rifles que disparavam até vinte tiros em seguida. Imagine você, num campo de batalha, tendo que enfiar uma bala, fazer mira, disparar, sair de posição, abrir a culatra, pegar outra bala, enquanto um inamistoso sujeito já deu sete tiros sem precisar alterar a posição. Devia ser bastante incômodo. Desagradável. Mas podendo atirar deitado, protegido numa trincheira, em rápida sucessão e, logo depois, com o apoio da metralhadora e dos canhões de tiro rápido, o infante podia trucidar a linha de sujeitos cantantes que vinha em sua direção. Foi a era da indefinição da guerra (curiosamente, no mar, a introdução do couraçado também tornou quase impossível afundar um navio. Antes do surgimento dos grandes canhões de fogo rápido, durante alguns anos o abalroamento do inimigo voltou a ser uma tática válida!!!!).
E agora? Como enfrentar de peito aberto - e mágoas no coração - um inimigo com alto volume de fogo e proteção? Vejam na segunda parte deste artigo.

Os Não Tão Mais Belos Poemas de Amor

No calor da paixão eu ceifei
Todas as outras mulheres
As calmas, as tranquilas,
as amantíssimas, as carentes,
as choronas, as belas, as ajeitadas,
as rejeitadas, as apaixonadas,
as alegres, as infelizes,
Os casamentos, os amigamentos

E agora, hoje, permaneço aqui
Genocida solitário
Nesta terra estéril e desolada
Por onde a sombra dela uma vez passou

(Luiz Henriques Neto)

Minhas Poesias favoritas - A MALDIÇÃO PARA O VIAJANTE QUE SE PERDE EM SEU PERCURSO, de Robert Graves

Que eles prossigam, passo após passo
Numa interminável peregrinação
Alvorada e anoitecer, légua após légua
E a todo e cada passo um obstáculo
E a todo e cada passo uma dificuldade
E que eles tropecem em seus próprios pés e caiam
E em toda e cada queda
Que um osso dentro deles quebre
E que o osso que quebre dentro deles
Nunca seja, variando com a sorte
Nem a costela, nem a coxa, nem o braço e nem a fíbula
Mas sempre, e em toda e cada vez, o PESCOÇO

Traduzido do inglês (que por sua vez foi traduzido do gaélico) por mim mesmo. Segue abaixo a versão anglófona:

May they stumble, stage by stage
On an endless Pilgrimage
Dawn and dusk, mile after mile
At each and every step a stile
At each and every step withal
May they catch their feet and fall
At each and every fall they take
May a bone within them break
And may the bone that breaks within
Not be, for variations sake
Now rib, now thigh, now arm, now shin
but always, without fail, the NECK

O Direito de Portar Armas

Houve quem dissesse durante o plebiscito do desarmamento, ano passado, que o cidadão precisa ter o direito de portar armas para se defender do Estado. Esta afirmação era válida na época em que os americanos escreveram sua Declaração de Independência. Eles estavam a caminho de se tornar a primeira democracia burguesa do mundo. Só faltava mulheres poderem votar e negros poderem ser gente, coisa que começou a acontecer uns cento e cinquenta anos depois. Mas pelo menos estavam apontando na direção correta. O resto do mundo ainda vivia sob monarquias e afins. Se o rei fosse um douto sábio com um certo desprezo por bens materiais e perseguindo realização espiritual, estava tudo bem com o povo. Infelizmente para o povo, gente com essas qualificações normalmente não ascendia ao trono, sendo derrubada ou assassinada pelo irmão ou general mais resoluto e decidido.
Mas mesmo no século XVIII essa linha de raciocínio de armas-contra-o-Estado-tirânico já não fazia muito sentido. Como qualquer historiador de meia-tigela (ou mesmo 1/8 de tigela ou menos) pode explicar, aqueles senhores feudais com seus reinos de 50 quillômetros quadrados ou menos tornaram-se impraticáveis depois da invenção da pólvora. Já não bastava uns bravos de cavalo e armadura cercados de um monte de infantes arrebanhados entre os homens válidos da propriedade para formar um exército. Eram necessárias armas de fogo. E pólvora. Caras demais para aqueles feudos sustentarem.
As primeiras armas de fogo de mão varreram as armaduras do mapa, tornando-as inúteis, transformando-as mais em um caro empecilho ao movimento do que em proteção adequada. Mas eram imprecisas e lentas na recarga. Quem dominava o campo de batalha era o canhão. A princípio sua grande utilidade era derrubar muralhas. Castelos bem construídos eram virtualmente impenetráveis pelo inimigo durante a idade do Ferro. Uma guarnição mínima, aproveitando a vantagem da altura e os muros inamovíveis, e que contasse com água e víveres, poderia se defender indefinidamente. Constantinopla, com as melhores muralhas que o mundo conheceu antes da Revolução Industrial, mesmo depois de ter perdido todo seu império, seus soldados e a grana pra pagar os soldados, só caiu depois da pólvora.
Com a chegada do demoníaco pó negro, aqueles condes e duques vassalos rebeldes não poderiam mais se esconder por trás de suas fortificações com meia dúzia de cavaleiros, vinte arqueiros e trinta vagabundas pra liberar geral nos momentos de tédio. Por favor, ignore completamente aquelas cenas do (ótimo épico) Cruzada, em que catapultas atiram de quilômetros de distância rochas enormes. Ridley Scott apenas achou que uma platéia contemporânea se sentiria mais no meio de uma batalha se reproduzisse um bombardeio aéreo. Na verdade, essas máquinas de assalto teriam sorte em mandar algumas pedras a mais de 100 metros de distância. Por motivos óbvios, esses pedregulhos descreveriam uma parábola e praticamente rolariam nos muros, ao invés de percorrer uma trajetória quase reta como uma bala. Em toda a Idade Média, a única vez em que um ataque à base de catapulta e aríete a uma cidade murada deu certo foi quando os europeus tomaram Jerusalém. Das outras vezes os invasores se valeram de traidores que lhes deram acesso ao interior, de golpes de sorte, como na queda de uma gigantesca fortaleza templária que foi invadida pela latrina (eca), ou de um longo assédio para que a guarnição defensora perecesse por fome ou sede.
Mas voltemos aos canhões. Até o século XVII, acho, era para destruir fortificações que eles serviam. Mas o avanço tecnológico levou à construção de canos melhores, que podiam ser mais leves e ainda assim não serem destruídos com as explosões em seu interior. Eles também ganharam rodas e passaram a ser móveis. Foi aí que se tornaram os soberanos dos campos de batalha, como arma antipessoal. Podiam ser carregados com balas, que atravessariam quinze soldados facilmente antes de cair ao chão, quicando e rolando, o que levaria ainda a várias fraturas na canela e nos pés de outros inimigos (é sério). Ou podiam ser carregados com metralha, um monte de chumbinhos, como se fossem escopetas gigantes, lançando uma verdadeira nuvem de destruição. O canhão tornou-se tão importante que até hoje, em conflitos convencionais, é o que causa o maior número de baixas.
O canhão no entanto era tão caro que acabou com a feudalização da Europa. Só ricos e poderosos estados centralizados podiam arcar com sua construção em massa, bem como dos rifles, munição e pólvora. É estranho, portanto, achar que hoje em dia, quando um exército nacional usa muito mais alta (e cara) tecnologia, uns sujeitos que gostam de andar armados vão poder se opor a ele. A não ser que se libere a venda de canhões, tanques e mísseis anti-tanques. Não? Ah, que pena, eu sempre quis ter um lança-chamas. E as revoluções guerrilheiras do século XX todas se fizeram praticamente sem armas. Fizeram-se com idéias. Por mais que se execre o que Mao Tsé-Tung, Lênin e Castro fizeram depois que chegaram ao poder, sua maneira de tratar o povo e as alternativas que lhes ofereciam conquistaram completamente a população para o seu lado, mais do que suas (poucas) armas.
Quanto a se defender de assalto, bem, aí há o problema de que o assaltante normalmente não avisa que vai assaltá-lo. Você também poderia criar o hábito de sacar sua arma sempre que visse alguém suspeito. E acabar matando alguém, como fez por exemplo o criativo pintor Iberê. Mas isso foi um caso isolado. Voltemos ao raciocínio puro. Há também o caso de muitos assaltantes atacando-o. Ou um arrastão. Como se defender com um 38? Melhor uma metralhadora. Não. Um fuzil de assalto. Ou uma metralhadora. Que tal plutônio? Entenderam? Michael Moore fez isso em "Tiros em Columbine", conversando com um americano psicopata que colecionava armas. Ele perguntou "e você também é a favor da venda livre de plutônio?" "Eu não. Tem muito maluco por aí".
Bem, então ninguém, nem mesmo um psicopata paranóico amante de armas, é a favor da completa liberação da venda de armas. É preciso um limite. Mas onde pôr o limite? Que tal este: fica proibida a venda de qualquer instrumento cujo único fim é causar ferimentos que podem levar à morte de seres vivos. Paremos nas facas. Elas são legais. Willie Garvin enfrentava sujeitos que queriam conquistar o mundo só com elas. Tive uma namorada há uns dez anos atrás, que tinha uns 22 anos. Ela adorava Modesty Blaise e só pouco tempo antes de me conhecer descobrira que era uma série de livros que tinha virado quadrinhos, não tinha começado já nas tirinhas. Mas o que mais a atraía era a relação da Modesty com Willie, o jeitão de irmão mais velho dele, o modo como ele a chamava de "Princesa". Para surpreendê-la, um dia fui na Cidade rodar sebos atrás dos livros originais da espiã. Um deles, perto da Praça Tiradentes (onde mais, dã?) é praticamente um monte de pilhas e pilhas de alfarrábios. Uma mulher um tanto gorda, envelhecida, com um ar desinteressado e de guarda-pó estava em pé à porta. Procurei um pouco na seção de policiais, mas não conseguia entender a arrumação da loja. Pensei em perguntar à mulher, mas achei que quando eu falasse "Modesty Blaise" ela ia mandar eu repetir três vezes antes de dizer que nunca tinha ouvido falar (isso me acontecia muito quando eu pedia a recém-lançada Diet Coke nos bares; tive que passar a pedir "coca sem açúcar"; também acontecia muito quando eu procurava bandas fora da parada de sucesso em lojas de discos).
Bem, sem paciência pra procurar naquelas pilhas todas e querendo ir logo ver em outra loja, perguntei pra mulher, por desencargo de consciência: "Tem livro da Modesty Blaise?", e a mulher respondeu (como um jesuíta): "Em inglês ou português?" (Cabe aqui acrescentar que a mulher era negra, o que obviamente a meus olhos tornava-a ainda mais incapaz de responder à pergunta). Comprei os livros, mas a namorada foi embora ainda antes de lê-los. Como ela andava muito de moto também e ela dizia que vez por outra se sentia vulnerável, dei-lhe também um canivete de mola. Ela adorou. Dei também um canivete suíço pruma namoradinha de São Luís. Ela tinha posto o maior olho no meu. Pediu pra dar uma olhada enquanto dirigia, abriu-o, o pôs contra a minha garganta. Eu pedi para que ela o tirasse e ela perguntou "você se acha sob meu poder agora?", "Não, eu acho que estamos andando numa estrada de terra e não quero morrer porque você está olhando pra mim e não viu o buraco à frente".
Eu só me meto com mulher maluca. Elas não podem andar armadas não.