dezembro 26, 2007

Zen Contemporâneo

Um discípulo de Shunryu Suzuki-Roshi se aproximou dele e perguntou:

"Se você preza tanto a liberdade, por que mantém um passarinho trancado na gaiola?"

Suzuki-Roshi foi até a gaiola, abriu-a e o passarinho voou para longe. Em seguida, virou-se para o discípulo e falou:

"O passarinho está livre - Você me deve um passarinho"

Zen Contemporâneo

Um discípulo estava tentando consertar um computador simplesmente ligando e desligando a máquina. Um mestre se aproximou e explicou:

"Você não pode consertar um aparelho simplesmente ligando-o e desligando-o sem saber o problema".

Então o mestre se aproximou do computador, desligou-o e ligou-o e ele funcionou.

(Tommy Knight)

dezembro 19, 2007

Meus Poemas Favoritos - Richard Cory

A primeira vez que ouvi falar de Richard Cory era uma (ótima) música do bom álbum triplo WINGS OVER AMERICA. Depois descobri que era na verdade do Paulo Simon e, mais tarde, finalmente, que era um poema belíssimo de Edwin Arlington Robinson, como os angloparlantes podem conferir abaixo e os angloprejudicados mais abaixo ainda, na minha pobre e livre tradução (as duas coisas sempre parecem andar juntas).

Whenever Richard Cory went down town,
We people on the pavement looked at him:
He was a gentleman from sole to crown,
Clean favored, and imperially slim.

And he was always quietly arrayed,
And he was always human when he talked;
But still he fluttered pulses when he said,
"Good-morning," and he glittered when he walked.

And he was rich - yes, richer than a king -
And admirably schooled in every grace;
In fine we thought that he was everything
To make us wish that we were in his place.

So on we worked, and waited for the light,
And went without the meat, and cursed the bread;
And Richard Cory, one calm summer night,
Went home and put a bullet through his head.


Sempre que Richard Cory vinha à cidade
Nós na calçada olhávamos para ele
Um cavalheiro magnificente dos pés à cabeça
Favorecido nas feições e majestaticamente esguio

E ele estava sempre discretamente ataviado
E era sempre bondoso e gentil ao falar
E ainda assim fazia corações dispararem ao dizer
"Bom dia", e parecia brilhar ao andar

E ele era rico - sim, rico como um rei
E admiravelmente escolado em todas as matérias
Em suma, pensávamos que ele era tudo
O que nos fazia desejar que estivéssemos em seu lugar

E assim continuávamos na labuta e esperávamos pela luz
E prosseguíamos sem a carne, e amaldiçoávamos o pão
E Richard Cory, numa calma e límpida noite de verão
Foi para a casa e pôs uma bala na cabeça

dezembro 06, 2007

A História do Cinema I - The Great Train Robbery

Diz uma história que preparava-se a adaptação de uma peça de sucesso para o cinema. Ainda em princípios de produção, o cineasta foi ao teatro assistir ao espetáculo e conversar com o autor-diretor da montagem. Em meio ao bate-papo, este virou para o sujeito dos 24 quadros por segundo e falou, "quer saber, vocês de cinema complicam tudo. Se eu fosse fazer um filme disto, eu simplesmente punha uma câmera numa cadeira e deixava rolar", ao que o "você do cinema" retrucou, "certo. Mas em QUAL cadeira você poria a câmera?"

Miríades de opções a mais que o cinema oferece à parte, na verdade o raciocínio do nosso teatrólogo era o mesmo dos primeiros cineastas. Começando uma nova arte do nada, ainda na aurora da arte moderna e das teorias futuristas e de avant-garde que revolucionariam o metiê nos anos 20, o povo com uma câmera na mão não tinha muita idéia na cabeça do que fazer com ela. As primeiras tentativas de contar historinhas com o cinematógrafo usavam a mídia como um teatro (mudo) a jato - os cenários podiam mudar instantaneamente (incluindo exteriores) e o uso inteligente de cortes e efeitos de montagem podia criar ilusões impensáveis num palco. No Rio de Janeiro, por exemplo, fez muito sucesso na década de 1900 a nacionalíssima película musical (sim, musical mudo) PAZ E AMOR. Durante a projeção, os atores ficavam atrás da tela fazendo a dublagem. Ou seja, o filme servia apenas para economizar na produção de uma revista musical!

E assim eram todas as fitas no alvorecer da sétima arte. A câmera ficava estática, aberta, enquadrando o que equivaleria aproximadamente a um palco, e com a ação acontecendo da esquerda para a direita (e vice-versa), para que nenhum ator ficasse de costas para a câmera (e no filme mudo, que é basicamente uma pantomima, a expressão do mímico é fundamental para a compreensão da história). À bidimensionalidade da tela somava-se a bidimensionalidade da ação, ficando tudo chapado e artificial ao extremo. Felizmente, logo algumas pessoas com generoso número de células gliais perceberam que tal abordagem era humilhante e degradante para toda a tecnologia envolvida na manufatura de películas. E começaram a experimentação que levaria à firme conclusão de que o cinema era a expressão do MOVIMENTO.



THE GREAT TRAIN ROBBERY é um filme de 1903, ainda bastante primitivo. A ação transcorre da esquerda para a direita. A pantomima é exagerada e risível para os nossos padrões. Durante o primeiro ato, a tecnologia é usada para criar superilusões teatrais (as projeções ao fundo na primeira cena (aos 20 segundos) e no tiroteio no vagão - 2 minutos) e a ação externa também transcorre bidimensionalmente. No entanto, alguns detalhes importantíssimos mostram o início da criação da LINGUAGEM DO CINEMA, independente e diferente da teatral.

Aos 2m48s, a câmera está presa em cima de um vagão. Está em movimento. E o bandido aparece em primeiro plano e move-se rumo ao fundo, de costas para ela. Subitamente o filme parece muito menos primitivo e tem um ar vagamente contemporâneo. Uma trucagem elementar termina a porrada com uma nota violentíssima. O enquadramento é ótimo e elegante e está criada a ação tridimensional. Está quebrada a bidimensionalidade da tela. A sétima arte torna-se uma experiência muito mais real e envolvente.

Aos 4m20s, os bandidos alinham os passageiros para assaltá-los. Para enquadrar esta ação de frente, a câmera, mesmo com a lente mais angular de que se dispunha na época, teria que ficar longe demais para que se distinguisse o que estava acontecendo. O diretor, Edwin S. Porter, sem alternativa, fez o que qualquer fotógrafo amador experiente faria - pegou a cena em diagonal. A composição é muito mais bonita e dinâmica e novamente está quebrada a bidimensionalidade da fita. Mais uma vez ela parece muito menos primitiva.

A cena seguinte também é diagonal, mas o que mais emociona os amantes do cinema é que, aos 6m09s, os bandidos saltam do trem. Em vez de mostrá-los saltando de lado, correndo da direita para a esquerda até sair de quadro, cortar para uma cena adjacente, com eles novamente correndo da direita para a esquerda até sair de quadro, tudo isso captado a uma distância respeitável, o que Edwin, o S. Porter, fez? Ele pegou a uma distância que, para a época, poderia ser considerada média, e FOI MOVENDO A CÂMERA PARA MANTER OS BANDIDOS EM QUADRO ENQUANTO ELES SUMIAM MONTANHA ABAIXO. A câmera estática está morta! Logo ela estaria sendo montada por Abel Gance no pescoço de cavalos. A ação é muito mais envolvente. A câmera segue o movimento como nossos olhos fariam - ela É nossos olhos! Nasce o cinema!

Infelizmente, Porter não seria o homem que levaria essas descobertas às últimas consequências. A cena é seguida por mais interiores bidimensionais, sem cortes, de longe. A patrulha persegue os bandidos atirando vindo de segundo plano para primeiro plano, mas não ocorreu ao diretor que a câmera poderia se movimentar não só da esquerda para a direita como também do fundo para a frente. Mesmo a quebra da quarta parede quando o bandido atira na platéia, na última cena, é apenas um efeito, não um manifesto de uma nova estética (e, apesar de tudo, um grande efeito, já que diz a lenda que espectadores se abaixavam ou saíam correndo neste momento).

Estávamos em 1903. Numa época em que o ritmo das descobertas era consideravelmente mais lento, o cinema avançava rapidamente. Passava de curiosidade a entretenimento de qualidade e firmava-se como arte, desenvolvendo sua estética e sua linguagem. Foram esses primeiros avanços que mostraram aos artistas modernos que eles poderiam usar aquela nova maneira de expressão, convenientemente de alta tecnologia, moderna como as concepções daqueles malucos do começo do século (vinte), poderia adaptar-se admiravelmente às suas propostas e teorias.

Ainda mais depois que um americano conservador e caretão chamado D. W. Griffith quebrasse a ação em planos rápidos e curtos que mostravam sempre exatamente aquilo que você precisava ver naquele momento, em vez de enquadrar uma cena inteira e deixar que o espectador escolhesse o que lhe interessava.

novembro 20, 2007

Um Celular com Câmera

Pichação






Urubumóvel (nada a ver comigo)








Lagartão em Copacabana. Provavelmente caiu no mar nas Cagarras ou no Pão
de Açúcar










O Golfista da Praça Cuauhtemoc

Chama-se Rui. Foi fazer um exame no hospital e não o deixaram sair - puseram-lhe cinco safenas. Enquanto aguarda pelo dia em que poderá voltar a realment praticar exercícios, treina seu drive e seu putting na praça Cuauhtemoc. Tem que tomar cuidado com as crianças, porque as bolas são pesadas, e com os cachorros, que querem correr atrás delas. Já machucou dois e teve que pedir muitas desculpas.





novembro 19, 2007

A Propaganda é a Alma do Negócio

Subjetivismo Concretista embaixo da Rocinha

Indo pro motel saindo do Dois Irmãos
Da favela jogam uma pedra que pega no pára-brisa do carro
(E o estilhaça, não o quebra)

"Meu amor", digo eu, "você me enlouquece,
o mundo vira um quebra-cabeças, tudo me são
apenas pedaços de um todo incompleto.
Estou esquizofrênico".

"Meu amor", responde ela, "você me inspira.
Vejo o mundo com os olhos
de uma pintora cubista".

E quem olha de fora pensa
"O amor dele os enredou
como uma teia de aranha"

Os Videntes

Não é que os cegos não vejam
Eles vêem o futuro
O tempo todo

novembro 05, 2007

Morro de São Paulo

Confio na palavra tanto quanto numa lâmina afiada
Se o diabo atenta, ela entra


Poesia (boa) pichada na Vila, de Ângela Toledo.



O Jardim de Manequins

Oi, gente. Voltei agora de férias e estou fazendo uns frilas que me deixaram sem tempo pra vocês. Assim que selecionar as melhores entre as mais de 600 fotos que tirei em Morro de São Paulo (malditas memórias de câmeras digitais) e reduzi-las, postá-las-ei aqui. Pra vocês não reclamarem que os abandonei, um texto meu do começo dos anos 90, um projeto de curta. Como ainda se iniciavam os 90, tem uma cara tremenda de década de 80 e confesso que na época andava meio sem saber sobre o quê escrever exatamente. Parei de escrever contos porque sentia-os ficando muito técnicos, com narrativas fantásticas, mas sem substância, muito glacê e pouco conteúdo. Salvou-me escrever para teatro, que me realinhou com a objetividade, com o compromisso com a narrativa e o melodrama barato. Aí vai, portanto, O JARDIM DOS MANEQUINS

cena i

bar/noite

mônica/ rapaz/ marisa



uma moça - mÔnica - está sentada entediada olhando para o chope, para as pessoas e o cenário em geral. Num bar, claro. um sujeito - um garoto mal saído da adolescência, um pouco mais novo do que ela - se aproxima.

Sujeito: A gente nunca sabe o que fazer quando nos deixam sozinhos...

Mônica: (DISTRAÍDA) Como?

Sujeito: Ah, quando estamos conversando e se levantam pra ir ao banheiro... a gente nunca sabe o que fazer, no que pensar...

Mônica: Sexo.

Sujeito: Como?

Mônica: Quando eu fico sem assunto na cabeça, eu penso em sexo. É bom ter uma boa vida sexual pra isso. Pra arejar a cabeça.

Chega marisa do banheiro, pega a bolsa e se ajeita pra sair.

Marisa: Vamos nessa?

mônica aquiesce, termina de beber o chope e se levanta, vai saindo com marisa, mas antes passa a mão na cabeça do rapaz.

Mônica: Tenha uma boa vida sexual. Areja a cabeça e a gente não fica tão obcecada com sexo.

o gAROTO FICA OLHANDO UM POUCO ELAS SE AFASTAREM, SEM SABER COMO RESPONDER E FALA, ENTREDENTES.

Sujeito: Sapatão...

Vai se afastando. Uma voz o chama.O garoto vai na direção dela e sai de cena.

Voz: Thiago! Aí, cara! E aí, como é que vai a Ritinha?



cena ii

ruas/noite

mônica/marisa



as moças vão andando e sorrindo pelas ruas.

Marisa: Tu não vale nada, Mônica.

Mônica: Hoje não tô pra barbado. Muito menos pra imberbe.

Marisa: Hoje é a noite das mulheres.

Mônica: Hoje é noite de encher a cara, Marisa. Chega de me esconder, de ter que tomar cuidado com isso, com aquilo. Estou livre! (GRITA PELAS RUAS) Não namoro mais homem casado! Terminei tudo!

uma voz grita em resposta, dos prédios.

Voz: Vai arrumar alguém, então, porra!

As duas se olham e riem.

Marisa: Não adianta, tem sempre alguém policiando.

retomam a caminhada. passam em frente a uma boutique. Mônica pára e fica olhando. Marisa, que continuou andando até o carro, a vê e volta.

Marisa: Já se apaixonou de novo?

corte. aparecem os manequins e o soturno interior da loja.

Mônica: Quando a gente se conheceu, o Marcelo vivia me dando presente...

Marisa: Umas roupas dessa?

Mônica: Porra nenhuma, ele achava feio. Ficava me dando uns vestidos lindos, mas que eu vou conseguir usar uma vez por ano. Depois não deu mais nada.

Marisa: Claro. Passou a ser a vez de você dar.

Mônica: Sabe que eu sempre quis ter o corpo desses bonecos?

Marisa: (SURPRESA) Pra quê?

Mônica: Ah, ó só... tudo firme, olha as pernas, tudo certinho... e tão sempre elegantes. E, porra, tão sempre bem vestidos. Melhor do que eu.

Marisa: Gostou dos vestidos, hem?

Mônica: Ah, tô com saudade de botar umas roupinhas assim e sair pra matar... aquele ali, como é que você acha que eu ia ficar nele?

marisa olha para um lado e para o outro, morde o lábio inferior.

Marisa: Vamos ver, então, porra!

marisa se abaixa e começa a mexer no cadeado que fecha a porta de vidro. Mônica observa surpresa a amiga, olha para os lados assustada, tenta se esconder sob a marquise.

Mônica: Você ficou maluca, Marisa? Que que você tá fazendo?

Marisa: Abrindo a porta.

Mônica: E desde quando você é arrombadora?

Marisa: Quando eu tinha dezesseis anos, namorei um garoto que abria carro. Só pra gente dar uma voltinha, depois largava. Pela emoção. E ele me ensinou a abrir fechadura.

Mônica: E você não ficava com medo?

Marisa: Ficava era com tesão! Transei em tudo que era tipo de carro com ele! Fiquei até expert nessas coisas (CONSEGUE ABRIR O CADEADO. EMPURRA A PORTA). Vamos entrar?

Mônica: "Publicitária e arquiteta presas por arrombamento e furto..."

Marisa: Sabe o que aconteceu com aquele meu namorado?

Mônica: O quê? Virou um traficante rico e famoso?

Marisa: Um advogado rico e famoso. (ENTRA)

mônica olha para um lado e para o outro, assustada.

Mônica: Ah, droga, eu mereço parecer bonita! (ENTRA)



cena iii

loja/noite

mônica/Marisa/assaltante



a loja parece bem maior por dentro. a luz vem toda da rua e de algumas fracas luminárias em cima. os manequins estão dispostos de uma maneira quase lúgubre, alguns pela metade, outros semi-vestidos.

Mônica: (PROCURANDO MARISA) Marisa... Marisa...

uma silhueta surge por trás dela, saindo das sombras, a cabeça envolta num véu, sem que ela perceba.

Marisa: (ABRINDO OS BRAÇOS E ENVOLVENDO A CABEÇA DE MÔNICA COM O VÉU) Experimenta este véu de escuridão!

Mônica: (ASSUSTADA) Aaaaaahhhh!

Marisa: Quieta, Mônica. Vai acordar a vizinhança toda!

os manequins observam mudos.

Mônica: Eles nem se mexem.

Marisa: (SENTANDO-SE SOBRE O COLO DE UM MANEQUIM) E você queria ser sexy que nem eles...

Mônica: Elegante, Marisa. Elegante. (DESPE UM MANEQUIM E EXPERIMENTA A ROUPA QUE ELE USAVA) E bonita.

Marisa: Você é bonita...

Mônica: Nosso conceito de beleza é diferente do de homem...

Marisa: "Vai narrar pelo mundo os meus tormentos:/ De almas estóicas a dureza louca/ Rirá dos teus lamentos/ Mas nos servos de Amor terás abrigo:/ Quando te ouvirem, chorarão contigo." Bocage.

Mônica: Bonito. Mas você não ia achar bonita a mesma mulher que ele.

Marisa: Que me importa a opinião dele? (GIRA A CABEÇA DE UM MANEQUIM EM SUA DIREÇÃO) Ele está morto e enterrado.

Mônica: E a gente, hem, Marisa? (EXPERIMENTANDO UMA BLUSA) Você acha que essa aqui tá boa preu ir presa?

Marisa: (APROXIMANDO-SE DELA, PERFIS LADO A LADO) Qual o problema? Sem dinheiro pra comprar roupas e sem ninguém que as dê de presente...

Mônica: É... (PEGA UMA BERMUDA. TIRA A CALÇA E COMEÇA A EXPERIMENTÁ-LA) Quando eu não trabalhava eu podia culpar meus pais por não ter dinheiro pra comprar essas roupas...

Marisa: Quando eu não trabalhava eu achava que nunca ia precisar trabalhar. (APÓIA-SE NUM MANEQUIM)

Mônica: Tinha um eterno pretendente rico?

Marisa: Não. Esse é um dos meus traumas. (PEGA UM DOS BONECOS) Eu era bonita e simpática. Os eternos pretendentes ricos tinham medo de mim. Todas as minhas amigas tinham um.

Mônica: E você ficou traumatizada com isso?

Marisa: Se não fossem os carros do Marcelo, ficaria mais. (TOCA AS MÃOS DE UM DOS BONECOS) "Marisa... em meu coração ardem chamas de revolta. O fogo da paixão abafa-se frente a seu calor. (DECLAMA PARA A AUDIÊNCIA MUDA DOS MANEQUINS) A fúria do desejo se envergonha frente à sua intensidade. E bate ele em meu tronco com força cada vez maior. Injusta é a força que o separou do seu" (ABRAÇA UM MANEQUIM) Ninguém nunca me disse isso.

Mônica: Nem a mim.

Marisa: E nem sentiu. Aí eu ficava escrevendo as coisas que esperava que dissessem. Daí achava que ia ser poeta e nunca ia trabalhar.

Mônica: Slogans não deixam de ser poesia.

Marisa: Mas trabalhar todo dia não deixa de ser trabalho. (DESPE UM DOS MANEQUINS, VESTE-SE COM A ROUPA DELE. EXAMINA O MANEQUIM) E se você tivesse esse corpo, afinal, ia trabalhar?

Mônica: Não sei. Se eu tivesse esse corpo, seria outra pessoa...

marisa vai até o interruptor e fica brincando com ele, acendendo e apagando, imitando flashes espoucando em cima dos manequins.

Marisa: Os homens perderiam a cabeça por você... os flashes espoucariam onde quer que você fosse... seu lar seria o mundo.

Mônica: E me pagariam pra usar essas roupas...

Marisa: (GIRA, MOSTRANDO CASACO QUE EXPERIMENTA) E dessa, o que diz? Sou uma mulher perfeita, agora?

Mônica: Alucinante... Faça uma mulher feliz: vista-a bem. Por que nos cobrindo nos sentimos melhores?

Marisa: Ó a mulher... fica deprimida, começa logo a querer ficar profunda... (ABRE UMA GAVETA) Ih! Vê só o que achei!

mônica continua trocando de roupa, observada pelos manequins, enquanto marisa vem caminhando em sua direção.

Mônica: O que foi?

Marisa: Poesias... "Alto; sobretudo, forte./ Faz noite em minha boca/ E as palavras se dissolvem em meu corpo/ Alto; sobretudo forte/ Faz escuridão em torno de nós/ E a linguagem escorre, afrodisíaca/ Pela garganta".

Mônica: Erótica.

Marisa: Vê se um homem vai querer se prestar a isso...

Mônica: "Descuidado; sobretudo apressado/ Sem imaginação, acende a luz/ Marcelo vai passando em minha vida".

Marisa: Deixa a poeta quieta, Mônica. Também já tive essa minha fase. Amores de papel.

Mônica: Logo você que eu sempre achei tão saidinha...

Marisa: Sempre fui muito crédula, Mônica. E quem acredita em alguma coisa, qualquer coisa, é sempre saidinha.

Mônica: A fé remove montanhas...

Marisa: Já foram tiradas todas, Mônica. Agora grandes são os desertos, minha alma, grandes são os desertos. (OLHA AS POESIAS) Vendendo essas roupas todos os dias... mulheres se embelezando para suas paixões... mulheres se reconstruindo na fossa... vestidas por poesias de sonhadoras...

Mônica: (AOS MANEQUINS) E muda, a assistência desfila magra e sedutora...

Marisa: E seus corpos perfeitos... também, não bebem, não fumam, não amam e não trepam...

Mônica: Um emprego e tanto. Beleza 24 horas por dia.

Marisa: As modas passam... e eles ficam.

Mônica: Mas não têm ninguém... por que que iriam se preocupar? Ó só essas pernas... vê as minhas... (SEGURA AS PERNAS DO MANEQUIM) tem gente que acha finas, outros acham grossas, uns dizem que sou leve, outros que sou muito terra... as pernas deles são as pernas deles. Ó os braços. Vê os meus. Dizia o Marcelo que tanto o apertavam... tanto o queriam para eles...

marisa pega uma jaqueta de um dos manequins e sai dançando pela loja.

Marisa: "All of me... why not take all of me... can't you see... I'm no good without you... take my lips... I want to lose them... take my arms... I never use them..."

Marisa continua dançanndo e cantando pela loja. mônica suspira abraçada a um manequim. murmura.

Mônica: ... Marcelo...

olha para o lado e, ao ver o manequim olhando para ela, vira-lhe o rosto. marisa pára de cantar. vai para próximo da amiga.

Marisa: Esquece, Mônica. Esta noite estamos ricas. Vamos nos alegrar fazendo todas as compras que queremos...

mônica olha para as roupas no chão.

Mônica: Não gostei de nenhuma dessas roupas... (OLHA OS MANEQUINS) Não gostei desses manequins... não gostei do garoto no bar... eu sinto falta do Marcelo...

marisa, que observava piedosa, abraça a amiga, que começa a chorar.

Mônica: Sempre falei tanto do Marcelo com aquele lenga-lenga da esposa e eu aqui não sei nem decidir que roupa levar...

Marisa: Se as pessoas realmente soubessem o que querem, Mônica, minha profissão não ia existir...

por sobre as imagens dos manequins imóveis, o som de passos. de alguém mexendo na fechadura. as duas meninas olham para a porta assustadas e vêem uma sombra mexendo na fechadura e entrando. com uma arma em punho. correm para o provador para se esconderem. o assaltante vai derrubando os manequins, espalhando as roupas. passa bem perto delas, que se encolhem assustadas dentro da cabine de provas. o assaltante vê as poesias da vendedora e as joga fora. Remexe mais nas gavetas. encontra corações flechados desenhados. também joga fora. por último, vê dinheiro. de sua sombra, vê-se apenas o brilho do sorriso. ele embolsa o dinheiro e vai embora. as amigas, assustadas, depois que ele saiu, também saem do provador e fogem.



cena iv

ruas/noite

mônica/marisa/passantes



na calçada, fora da loja, as amigas olham-se uma para a outra e sorriem. começam a rir. gargalham desbragadamente e sentam-se no meio-fio.

Mônica: Por que que só a gente podia estar na fossa hoje?

Marisa: Homem prefere ir logo direto à questão...

Mônica: E acabou que a gente não trouxe nenhuma roupa. Nem de lembrancinha...

enquanto elas falam, ouve-se ao fundo o alarme da loja e vozes gritando ao longe "pega ladrão, pega ladrão", depois sirenes e sons de tiros.

Mônica: Ah, Marisa... valeu, amiga. Tô me sentindo melhor (ABRAÇA-A)

Marisa: O que eu te falei, Mônica... nada como uma visita a uma boa boutique pra animar uma garota...

a câmera vai fazendo zoom-out. as duas amigas riem no meio-fio. continua o som de tiros. pessoas passam correndo, algumas de pijama, curiosas para saberem o que está acontecendo. passa um carro de polícia.

Marisa: Olha que pessoal exagerado...

Mônica: Sabe de uma coisa, Marisa? Você precisa me ensinar a arrombar fechaduras...

fade-out. fim.

setembro 24, 2007

Crônica minha em O Globo de domingo



Na data acima, saiu uma crônica minha no Segundo Caderno, na seção LOGO - A PÁGINA MÓVEL, como se pode ver na foto aqui. A página inteira e a crônica estão à disposição logo a seguir

A Crônica como saiu em O GLOBO

Clique na foto abaixo para ampliá-la e ler a crônica como saiu no jornal. Se preferir, o texto original, antes da edição, e digitado bonitinho, em vez de fotografado, está logo a seguir no blog.

O Texto da Crônica

Não, não vi TROPA DE ELITE. Não por motivos éticos, afinal sempre poderia racionalizar que cinema no Brasil é feito às custas de dinheiro público e todo mundo já recebeu quando as fitas chegam - ou não! - nos cinemas, mas porque, desde que investi uma grana preta numa tevê widescreen, dou preferência a DVDs com ótima imagem. Nem sempre é possível. FACA NA ÁGUA e PLANETA PROIBIDO, por exemplo, tive que baixar, já que ninguém ameaçou até agora lançá-los por aqui. Também não aguentei esperar o longa dos Simpsons no cinema. Descobri que Bukowski não só é ótimo romancista, mas poeta ainda melhor. Não curto muito, mas tenho amigos que assistem a toda a temporada de sua série favorita antes de estrear por aqui. E MP3, então, nem vale a pena mencionar. Ainda não tenho um iPod, mas com certeza já o teria enchido com todos os CDs queimados com músicas guardados em estantes periclitantes lá em casa.

É que sou viciado em arte. Coisa de criação. Muitos pais ficam desgostosos quando vêem que o filho se dá melhor com livros do que com uma bola - e olha que tento até hoje! - mas os meus não tomaram nenhuma providência e logo eu estava num caminho sem volta - frequentando sebos, lendo gibis nos jornaleiros e gravando fitas K7 de discos de amigos. Meu presente de formatura foi um video-cassete e devo ter sido um dos 5 viventes que aprendeu a programar o temível aparelho sem evoluírem até seres de pura energia.

Mas ainda assim o mundo digital me pegou completamente desprevenido. A mim, às gravadoras, editoras e cinemíferas. Foi como o surgimento da pólvora, você não precisava mais enfiar uma espada na barriga de alguém, olho no olho, se sujando todo de sangue. Tudo passou a ser rápido, limpo e à distância, bastando apontar, disparar e esperar. Eu podia estar assaltando ou traficando para sustentar meu vício, mas estou apenas infringindo direitos autorais. Uma invenção recente. Coisa da revolução industrial. Segundo o saudoso João Bethencourt, as peças de Shakespeare são reconstruções de cabeça. Publicar o texto dos espetáculos significava que alguém poderia montá-los sem pagar um tostão. Teatros rivais contratavam sujeitos com boa memória para assistir às encenações e pô-las no papel. Graças a esses piratas hoje o Harold Bloom pode dizer que o velho Bill inventou a humanidade.

E o velho Bill tinha que tomar precauções mesmo, porque vivia dos ingressos. Parcamente. Artista rico só foi aparecer quando os irmãos Lumiére começaram a contar a verdade a 24 quadros por segundo e Edison girou um cilindro sob uma agulha. Até então ninguém seguia carreira artística por grana. Segundo os GÊNIOS DA PINTURA e VIDAS CÉLEBRES que eu lia quando moleque, esse povo morria tudo de tuberculose, era incompreendido pelos contemporâneos, tinha paixões não correspondidas e infelicidade geral. Raramente conseguiam uns trocados para uma existência decente e ainda assim tinham problemas familiares, com o álcool, com as autoridades...

Mas tudo isso mudou quando o cinema e o disco multiplicaram exponencialmente o público. Tudo bem, já tinha Gutenberg e a imprensa, mas quanta gente alfabetizada e com dinheiro para uma biblioteca existia antes da Segunda Revolução Industrial? Com essas novas tecnologias surgiram os astros - ricos, bonitos e famosos - e, quando Elvis rebolou aqueles quadris, foi a vez do superstar. É esse estilo milionário de vida de artista que está em risco com a pirataria digital. Ou não. Na verdade, nós não os idolatramos pelas suas obras. Ou pelo seu talento. A cultura pop, a grande ameaçada, não vive disso. Vive da atitude.

Muita gente era melhor do que Elvis, mas foi ele que virou o ícone. O mesmo de Marilyn. Ou muitos outros. Sua beleza, seu talento, mais do que sua obra, nos fizeram dar-lhes procuração para viver e simbolizar a vida que não podemos ou não conseguimos ter. Antes da cultura de massa, os valores eram outros, e artistas encarnavam profetas com uma visão coerente e desdém pelos valores materialistas da sociedade. Daí a tuberculose. O público mudou, os valores mudaram e o desdém agora é só pela sociedade, mas não pelo materialismo. Nós QUEREMOS que eles sejam ricos para projetarmos nossos sonhos, como já quisemos que fossem mártires miseráveis. E assim, que remédio, eles são ricos. Os conceitos de "Top Model" e "Big Brother" já pularam até a etapa da obra artística. Tudo bem, continua sendo uma vida difícil, cheia de álcool, drogas e relacionamentos vazios, mas pelo menos também cheia de grana, mansões e limusines.

Quanto à arte, vai ter sempre gente produzindo. Alguns anos atrás, eu explicava a um amigo que teria que ficar dias e dias enfunado em casa escrevendo uma peça sobre um assunto que não gostava, num estilo que não gostava, me matando para ganhar 500 reais. "Eu jamais escreveria uma peça por 500 reais", disse ele. "É porque você não é escritor", retruquei. Se você precisa saber por que escreve, não é escritor, já dizia um André desses, não me lembro se o Gide ou Malraux.

Mas tudo isso é racionalização. Pirataria é crime. É que nem gente que consome drogas e fica fazendo elocubrações para justificar-se. Não adianta. É contra a lei e ainda financia o crime organizado. Mais cedo ou mais tarde, vai ser que nem a Lei Seca, vai ter que liberar geral. Mas até lá é ilegal. O resto é desobediência civil. Essas coisas de artistas e profetas. Mas chega. Acabei de baixar MÓRBIDA CURIOSIDADE e pela primeira vez vou ver em seu aspecto original widescreen.

Espero que dê onda.

Cláudia Belém


Se esbaldando no 7 de setembro no samba da Santa Luzia

setembro 06, 2007

Por que a defesa dos Colts melhorou tanto?

Porque um dos 4 titulares que saíram está no Saints e nas costas dele já foram anotados 3 touchdowns. Jason David não vai deixar saudade em Indianapolis.

Jogada có-co-có-cococó-estou com medo

Começo do último quarto, 27 a 10 para os Colts, cujo ataque está demolindo a defesa, na terceira descida você fica a meia jarda de nova série e... você vai pro punt? Ou seja, você não confia no seu ataque pra ganhar meia jarda? Não é melhor mandar os reservas entrarem logo?

Resultado do punt: em cinco snaps os Colts fazem 34 a 10.

Mesmo quem achava que os Colts estavam tão bem ou melhor do que no ano passado previa um jogo 34 a 30, 30 a 27... ninguém, absolutamente ninguém tivesse idéia de que o ataque demoliria completamente a oposição e a defesa paralisaria Drew Brees, uma das maiores sensações da temporada passada. Joseph Addai cumpre a previsão de um comentarista que disse que ele, como titular, mostraria que Edgerrin James é mais do que passado. Mesmo levando em conta que o medo do passe (o TD que saiu agora foi de 50 jardas) do Manning faz as defesas adversárias darem espaço pros corredores (e foi assim que teve gente que começou a achar que Dominic Rhodes era craque ano passado), Addai tá mostrando que tem bola...

Que surra.

Recomeça a NFL

Peyton Manning, o maior quarterback da atualidade, enfrenta Drews Brees, o melhor comandante da conferência nacional. Estamos no meio do terceiro quarto. Pete Prisco havia comentado em sua coluna que a perda de 4 titulares da defesa dos Colts na verdade só a tinha melhorado, com uma agarrada muito superior. E não é que é verdade? Nenhum TD ofensivo dos Saints até agora. Só um field goal. E, se não fosse pelo apagão momentâneo, provaelmente psicológico, depois do fumble pra touchdown, ia estar sendo um massacre. Antes e depois do Wayne soltar a bola, a defesa está firme, tanto por cima como por baixo e o ataque está tão bem quanto em suas melhores apresentações nos últimos anos - corridas de muitas jardas, passes rápidos, passes longos, o bicho. Pete Prisco estava certo.

setembro 05, 2007

setembro 01, 2007

Meus Poemas Favoritos: Eu Não Sei Se Você Está Vivo ou Morto

Anna Akhmatova, poetisa russa da época da Revolução e depois perseguida por Stalin por ser "burguesa". Seu primeiro marido foi executado e seu filho passou a maior parte da infância nos gulags. Obviamente eu não sei russo (1), portanto a versão aqui abaixo é de uma livre tradução minha em cima de uma tradução para o inglês, ou seja, deve ter sobrado muito pouco do poema original. De qualquer forma, a versão anglófona está aí também:

Eu não sei se você está vivo ou morto
Será que você ainda é procurado sobre a terra
ou apenas quando o crepúsculo se esvai
serenamente lamentado em meus pensamentos?

Tudo é para você: a oração diária
O desejo nas noites insones
O alvo floco dos meus versos
O fogo azul de meus olhos

Ninguém foi mais estimado
Ninguém me torturou mais
Nem mesmo aquele que me traiu para meus torturadores
Nem mesmo aquele que me acariciou e esqueceu



I don't know if you're alive or dead.
Can you on earth be sought,
Or only when the sunsets fade
Be mourned serenely in my thought?

All is for you: the daily prayer,
The sleepless heat at night,
And of my verses, the white
Flock, and of my eyes, the blue fire.

No-one was more cherished, no-one tortured
Me more, not
Even the one who betrayed me to torture,
Not even the one who caressed me and forgot.


(1) Quando eu li pela primeira vez Dostoievski, OS IRMÃOS KARAMAZOV, vi que a tradução era da Rachel de Queiroz e fiquei estupefato, "caralho! A Rachel de Queiroz sabia até russo". Somente quando há alguns anos lançaram a primeira tradução do Velho Dosta direto de sua língua pátria é que soube que a nossa primeira acadêmica havia trabalhado em cima da tradução para o francês - segunda língua russa no século XIX.

agosto 30, 2007

Mais sobre matérias de O GLOBO

A coluna hoje do CONTROLE REMOTO no Segundo Caderno tem um editorial (???) dizendo que a tevê brasileira não produz obras-primas como ROMA (???) ou OS SOPRANOS (???) porque não pode tratar de assuntos como homossexualismo e violência.

Ainda esta semana, na coluna do genial comentarista de futebol americano .Gregg Easterbrook (clique, vale a pena, ele não fala só de futebol americana, fala de astrofísica, mulher pelada, ficção científica, história em quadrinhos, aviões a jato, o que lhe der na telha), ele justamente se indagava se as pessoas viam OS SOPRANOS pelo conteúdo de "soap opera" ou pelos peitinhos e assassinatos, considerando que bons só os primeiros episódios, com a premissa de um chefe da máfia tão cansado de assassinatos e violência que procurava uma analista.

Mas isso não vem ao caso, as séries que a mulher quer comparar com as novelas que a Globo passa às nove da noite são séries da HBO, uma tevê a cabo que nem faz parte dos pacotes básicos. Quem a compra sabe o que está fazendo e tem mecanismos no decodificador para gerar uma senha e tornar inassistíveis programas com certas classificações etárias - sim, eles TÊM classificação etária até em tevês a cabo. Tanto que OS SOPRANOS, ROMA e A SETE PALMOS todas TAMBÉM passam na tevê a cabo brasileira. Vi as duas temporadas de Roma e, apesar de bem escrita e tal, nada mais é que uma DALLAS com personagens históricos, muito mais peitinhos (e até uma ou outra boceta) e muito mais violência (com duelos de espada mal coreografados). A
HBO produz essas séries pra passar no seu canal fechado e se garante com o que cobra de patrocínio e vendas de DVDs. Nem ao menos passa comerciais (Embora o faça internacionalmente. Na Américao do Sul, por exemplo, o único país a exibir publicidade nos intervalos é o Brasil). Tal projeto é impensável pra Globo, que até pra fazer filmes sobre programas seus, usando atores da casa, roteiristas da casa e equipamento da casa, pedem patrocínio público. Na tevê aberta americana, o que passa são ER, CSI e sitcoms. Lá nas grandes redes nem peitinho tem, coisa que no Brasil está liberada desde o final dos anos 70 (anúncio do Sabonete Vale Quanto Pesa, 1979).

ROMA e, talvez (porque nunca vi, não sou de assistir telesséries) OS SOPRANOS e A SETE PALMOS são melhores do que as novelas brasileiras porque têm escritores melhores - os americanos são mais escolarizados e têm muito mais mercado de trabalho, o que garante uma disponibilidade maior de roteiristas de qualidade. E também porque não têm o formato de telenovela.

Filmar uma novela diária de 200 capítulos pode soar uma operação de guerra, mas barateia os custos. O uso dos mesmos cenários por meses a fio diminui o preço por episódio. Mostrando sempre os mesmos atores nos mesmos lugares, dá pra organizar a filmagem de modo a economizar tempo de estúdio. O uso de personagens já conhecidos do público há semanas facilita o trabalho do roteirista, que também não precisa se preocupar em fechar dramaticamente cada capítulo, ou ser sucinto, já que tempo é o que não falta. O preço que se paga é a falta de identidade visual e de qualidade na escrita. ROMA teve 22 capítulos. Cada temporada estreou já completamente escrita, com personagens coerentes e trama coesa e concisa. Mas esse formato é caro e não interessa a eles.

A queda da popularidade das telenovelas é firme e contínua. O formato está ultrapassado, não o conteúdo. Não adianta introduzir assuntos como homossexualismo, drogas e violência se as tramas continuarem conservadoras, vai parecer uma história em quadrinhos de super-herói da DC. A esperança talvez seja de que peitinhos e assassinatos atraiam homens e principalmente adolescentes. Não sou especialista, mas a impressão que tenho é de que novela é que nem jogo do bicho - vem caindo em popularidade e, principalmente, é coisa de gente mais velha, não vem formando novo público. Daí a esperança na carne - tripas e pele - para salvarem o ibope. Acho pouco provável. As redes abertas americanas praticamente desistiram da sitcom tradicional. É um formato ultrapassado. Estes são tempos de mudança. Internet, DVD barato e tevê paga em quantidade mudaram o gosto do público. E com a tevê em alta definição, mais mudanças virão. É preciso se adaptar, e não vai ser mais violência e peitinhos que trarão as crianças de volta

Comprar o DVD pirata de TROPA DE ELITE não é pirataria. Pelo contrário, é um direito de quem realmente pagou pelo filme. Na verdade, devia ser grátis

E-mail do meu amigo Zé José, que o postou no blog de sua revista, a Zé Pereira (revistazepereira.com):


PIRATARIA E CINEMA BRASILEIRO


Em artigo publicado no jornal “O Globo”, o diretor José Padilha expressa sua indignação por ver seu filme “Tropa de Elite” ser vendido de forma ilegal em camelôs. Segundo ele, as pessoas que compraram o DVD pirata do filme estão assistindo a ele de forma inapropriada, já que a mesma foi feita a partir de uma cópia inacabada. Isso torna mais do que compreensível sua frustração enquanto artista. Entretanto, incorreções em seu texto impedem uma maior reflexão sobre o tema. Padilha reclama com toda razão da inépcia e da cumplicidade da polícia — que não tem inibido como deveria uma prática que, afinal de contas, é ilegal. Erra, porém, ao cobrar do governo apenas mais eficácia na repressão a este tipo de crime. O governo precisa fazer muito mais.
Padilha diz que quem compra DVD pirata está prejudicando pais de família que vivem da atividade cinematográfica no Brasil. Não é bem assim: graças à política cultural de incentivo fiscal vigente, os filmes já chegam pagos aos cinemas e os profissionais que nele trabalham são previamente remunerados. Ademais, um filme que custou R$ 10,5 milhões dificilmente se pagará apenas com o dinheiro arrecadado nas bilheterias dos cinemas do Brasil — e certamente não dará lucro algum. O diretor fala de indústria cinematográfica brasileira, termo que não passa de peça de ficção. Que indústria é essa que é totalmente dependente do dinheiro público? Se um filme é feito com dinheiro de impostos — que poderia ser revertido para educação, saúde e segurança, por exemplo — ele não é só do seu produtor, pertence também a qualquer cidadão — que, ao menos em teoria, tem direito a educação saúde e segurança públicas gratuitas. Como artista consciente — com certeza o diretor de “Ônibus 174” e
produtor de “Os carvoeiros” o é — Padilha deveria cobrar do governo políticas para tornar seu filme acessível ao cidadão. Se “Tropa de elite” é um sucesso de vendas no comércio informal é porque existe demanda. Mas, como se sabe, há muito o cinema deixou de ser um bem cultural ou de lazer acessível às classes menos favorecidas. Na verdade, dadas as circunstâncias, Padilha deveria ver no pirata um aliado.

http://blogdozepereira.blogspot.com/

agosto 24, 2007

O que é, afinal, "Progressive Scan"? E o que significam esses esotéricos 480i, 720p, 1080i?

(Clique aqui para um post sobre formato de tela de tevês de plasma - e cristal líquido)

Já há alguns anos que leitores de DVD se anunciam como tendo "progressive scan". Como a imensa maioria das televisões não tem "progressive scan", a maioria das pessoas não descobriu a diferença entre ter ou não esse recurso. E, mesmo os felizes possuidores de tevês HDTV-ready que tenham essa habilidade às vezes até percebem que a imagem fica bem melhor quando lida de um DVD, mas não sabem exatemente o quê está acontecendo. Então, como a tevê digital que vem aí está carregada de termos como "720p" ou "480i", que parecem fora do alcance de meros mortais, eu, como um nerd bem-informado, vou tentar explicar rapida e facilmente pro pessoal menos chegado a ler manuais de instruções e artigos técnicos.

Todo mundo sabe como funciona o cinema, não? NÃO? Então, vou tentar ser sucinto e esclarecedor. Pegue um fósforo em brasa numa sala escura e gire rapidamente. Em vez de você ver apenas uma brasa se movendo, você vai ver uma espécie de círculo em brasa. O mesmo fenômeno acontece quando você está numa pista de dança com luz estroboscópica - ao invés de você ver a luz se acendendo e apagando, você tem a impressão de que ela está acesa o tempo todo e que todo mundo está dançando em câmera lenta. Isso acontece porque você não vê o mundo numa única imagem contínua, mas por amostragem. Quarenta e oito vezes por segundo seu olho manda um quadro para o cérebro e ele "monta-os" num movimento contínuo.

O cinema se aproveita disso para funcionar. Ele é filmado em 24 quadros por segundo. Cada quadro é projetado duas vezes e nós temos a sensação de uma imagem em movimento contínuo. Beleza. Quando inventaram a televisão, usaram o mesmo princípio. Só que havia - sempre há em invenções novas - um porém. Aproveitando que os sistemas elétricos residenciais eram de 60 Hz (60 hertz, ou 60 ciclos por segundo), seria fácil criar um aparelho que mostrasse 60 imagens por segundo. O problema era que, com o sistema disponível para transmitir os dados pelo ar, um sexagésimo de segundo só conseguiria mandar 240 linhas de resolução para os televisores. E, devido a certas deficiências inerentes da coisa toda, essas 240 linhas acabariam dando só umas 200 linhas. Pouco, muito pouco.

Foi aí que alguém pensou, "ei, peraí! Vamos fazer cada quadro com 480 linhas e dividir o quadro em dois campos". O primeiro ciclo mandaria somente as linhas ímpares - a linha 1, a linha 3, a 5, a 7 e assim por diante. No lugar das linhas pares, apenas trevas e escuridão. No ciclo seguinte, viriam as linhas pares - a linha 2, a 4, a 6 etc. etc. No lugar das linhas ímpares, ver-se-ia apenas a coisa preta. No cérebro, as duas imagens se fundiriam e - voilá! - eis uma imagem de 480 linhas (na prática cerca de 350, devido a um monte de problemas técnicos inerentes ao sistema). A maneira de se desenhar a tela, como se tecendo uma malha, inspirou o nome, "entrelaçado", em inglês, interlaced. Esse sistema original de transmissão tinha 480 linhas entrelaçadas, daí o "480i".

Embora você não perceba, o seu cérebro e os seus olhos sabem que estão vendo apenas meia cena a cada quadro. Ver metade da imagem preta o tempo todo acaba cansando sobremaneira a vista. Quem já viu dois vídeos seguidos sabe o sono que dá, muito mais sono do que ver dois filmes no cinema, por exemplo. Quando você apenas vê tevê muito tempo não se cansa tanto porque está toda hora levantando pra ir ao banheiro, comer alguma coisa, ou mesmo desviando o olhar pra conversar com alguém ou atender o telefone. Quando as pessoas começaram a usar o computador pra valer nos anos 90, trabalhando o dia inteiro em frente a um monitor, os efeitos devastadores disso sobre a saúde forçaram à invenção de um novo tipo de tela - a progressiva, na época conhecida como "não-entrelaçada" (non-interlaced).

Esse novo tipo de monitor apenas desenhava a tela toda de uma vez a cada ciclo, de alto a baixo, começando pela linha 1, depois pela 2, 3 e assim por diante. Com quase toda certeza, você está lendo isto numa tela progressiva, ou não-entrelaçada. Muito menos cansativo e capaz de desenhar uma imagem muito mais firme, sem contar a nitidez e o detalhe muito maiores em qualquer coisa que se mova (vou explicar a razão já, já). Se o modo progressivo só tem vantagens, por que não foi então adotado logo pelas televisões?

Porque a transmissão continua sendo feita do mesmo jeito, de maneira entrelaçada. Um monitor progressivo não tinha como converter a informação entrelaçada, a não ser dispondo de grande poder de processamento e muita memória, duas coisas caríssimas até o século XXI. No entanto, sabendo do progresso vertiginoso da informática, quando foram delineadas as especificações mundiais para tevês digitais, foi prevista a varredura progressiva ("varredura" porque a imagem nas velhas tevês de tubo se formava com um canhão de elétrons que bombardeava cada ponto de uma linha da tela, depois baixava e bombardeava outro). Devido à largura de banda disponível, a resolução da imagem seria em 720 linhas progressivas ou 1080 entrelaçadas - os misteriosos 720p e 1080i (de interlaced, entrelaçado).

Na verdade, como o 1080i são dois meio-quadros a cada ciclo, só são enviadas 540 linhas por vez. O 720p envia (dã) 720 e usa mais largura de banda para formar uma imagem com menos resolução. À parte cansar menos a vista, qual a vantagem do 720p?

Se você estiver assistindo a uma figura estática, o 1080i tem uma imagem superior - pode exibir mais detalhes. No entanto, se alguma coisa começa a se mover, o quadro degrada-se tão velozmente quanto o movimento em cena. Por quê? Vamos usar um exemplo prático:





Na figura 1, temos uma cruz numa hipotética cena em 3 linhas - vamos chamar de "3p", porque essas linhas serão sempre desenhadas progressivamente. Na figura 2, temos a mesma cruz em 6 linhas de resolução. Será a nossa imagem entrelaçada, em "6i". Note que conseguimos perceber que no quadrado branco central há um detalhe cinza, invisível em 3p por ser muito pequeno. O quadro em 6i tem uma imagem superior.






No entanto, se a cruz começar a se mover em diagonal, para a esquerda e para baixo, os defeitos do entrelaçamento são revelados. Nas figuras 3 e 4 a transmissão em 3p mostra o movimento sem problemas, numa transição suave. As figuras 5 e 6 mostram como veríamos a cruz se movendo em quadros de 6 linhas. A figura 5 tem a cruz ainda
parada e na figura 6 ela já se moveu.
Como o sistema entrelaçado só envia metade da cena por vez, teríamos então num primeiro momento só as linhas ímpares da figura 5 - ou seja, a figura 7. No momento seguinte, a cruz já se moveu, mas só teríamos as linhas pares dela descendo em diagonal, ou seja, a figura 8, que nada mais é do que as linhas pares da figura 6. E nosso olho fundiria as figuras 7 e 8 na figura 9, que parece mais uma sopa de letrinhas do que nossa cruz, esteja ela imóvel ou se movendo!!!!






Figura 9


Calcula-se que com essa brincadeira uma televisão entrelaçada perca até 50% da qualidade da imagem. Tevês de plasma, de cristal líquido ou as topo-de-linha de retroprojeção, como a do Arnaldo, ou mesmo de tubo, como a do Carlos Sueli, são progressivas. Quando ligadas a um DVD desenham cada imagem de alto a baixo, de uma vez. O movimento é mais suave, as bordas não borram e objetos pequenos não somem quando se movem (o que pode acontecer no entrelaçamento se eles derem o azar de estarem fora dos dois meio-quadros em cada ciclo). O problema é que a transmissão atual ainda não é progressiva e os aparelhos não podem ser meio-progressivos. Para poderem exibir uma imagem da Globo ou da Record, ou mesmo da Sony ou do Discovery, eles são obrigados a processar a imagem em seus chips (sim, hoje em dia todas as tevês têm chips processadores de imagem).

O que esses chips fazem para tornar a imagem progressiva é pegar cada meio-quadro e "interpolar" as linhas que não são transmitidas. Em vez de desenharem linha 1, linha escura, linha 3, linha escura, eles fazem o seguinte - linha 1, linha interpolada, linha 3 etc. Na interpolação, o chip tenta adivinhar a linha que falta pegando as de cima e de baixo e fazendo uma média. Os aparelhos mais baratos simplesmente repetem a linha de cima. A imagem fica uma merda. Outros fazem a média da forma mais simples - se a linha 1 é branca e a 3 é preta, eles desenham uma linha 2 cinza. Outros, mais sofisticados, usam algoritmos cada vez mais complicados. Em vez de pegarem só a linha 1 e a 3, vêem todas em volta pra fazer seu cálculo - assim, se a 1 é branca, a 3 é preta, a 5 é preta e a 7 é preta, eles supõem que a 2 deve ser preta também e não cinza. É claro que tudo isso é simplificado e os programas de interpolação são bem mais complicados, mas o princípio da coisa é esse.

Só que, ainda assim, quando "desentrelaçada" via interpolação, ainda assim a imagem não fica perfeita. O movimento dela é mais contínuo, mas a definição perde muito. É por isso que uma transmissão de tevê comum vista numa tela de plasma ou cristal líquido sempre tem aquele aspecto um tanto "embaçado" ou "borrado". Não é à toa que esses monitores normalmente estão ligados a um DVD em lojas, usualmente através do cabo triplo de vídeo-componente, o mínimo para se enviar ao aparelho uma imagem progressiva - em 480p que é o limite máximo dos disquinhos.

No entanto, já há televisores com resolução de 768p ou mesmo 1080p - o máximo teórico da tevê digital. Por isso, existem alguns DVDs que usam seus chips para interpolarem a imagem - da mesma forma que os chips da tevê fazem o desentrelaçamento - e aumentarem a definição para 720p ou 1080i. Existem mesmo um aparelho da Samsung que joga a definição para 1080p, o que faz sentido, já que o único modelo de televisão que chega a isso é um LCD (cristal líquido) da gigante coreana. Os caríssimos leitores de Blu-Ray e HD-DVD mandam em 1080p, mas ainda custam muitas verdinhas e têm poucos títulos disponíveis.

Como o movimento fica melhor em progressivo, mesmo que em resolução teórica mais baixa, lá fora, onde já tem tevê digital, programas esportivos ou séries de ação preferem transmitir em 720p. Talk-shows, sitcoms, filmes de Yazujiro Ozu ficam melhor em 1080i - embora não seja compreensível porque alguém queira ver um sujeito parado entrevistando outro com alto nível de detalhe. Atualmente não se usa em lugar nenhum transmissão em 1080p, por problemas de largura de banda, mas com o desenvolvimento de softwares capazes de comprimir a imagem em tempo real com mais desenvoltura, enviando mais informação em menos bytes, podemos supor que é apenas questão de tempo chegar a tanto.

Em breve, um artigo explicando o princípio de funcionamento das tevês de plasma e cristal líquido, já que no final do ano começam as transmissões digitais e você, quando for trocar de aparelho, vai precisar saber essas coisas.

agosto 23, 2007

Sobre um Basquete que não vai a uma olimpíada desde 1996

Tirando os Estados Unidos, qual o país existente com mais títulos no basquete mundial?

Surpresa, surpresa, é o Brasil. Na frente dele no ranking de todos os tempos estão apenas os EUA, a URSS e a Iugoslávia e estas duas últimas nações não existem mais, tendo-se desmembrado numa miríade de paisecos.

A grande era das conquistas masculinas começou com o bronze nas Olimpíadas de 1948, seguido pela prata no Mundial de 54, disputado aqui. Em 59 e 63 o Brasil foi bicampeão mundial e ganhou dois bronzes nas Olimpíadas em 60 e 64. Outro bronze veio no Mundial de 67, seguido pela prata no de 70. Em 74 houve um hiato e novo bronze veio no Mundial de 78. E depois acabou. A única conquista significativa depois disso acabou de fazer 20 anos, o ouro no Pan de Indianapolis em 87.

E, não por coincidência, 1978 foi a despedida dos grandes craques Ubiratan e Hélio Rubens e o começo do reinado de uma nova superestrela - Oscar.

Quem viu o Mundial de 1978 de basquete, nas Filipinas, transmitido cedinho de manhã, deve recordar de como veio aquela medalha de bronze. O Brasil estava um ponto a frente e faltavam uns quarenta segundos. Em vez de gastar o tempo, Oscar ou Marcel, não lembro quem, queimou um arremesso, os italianos pegaram o rebote, gastaram quase todos os trinta segundos (o tempo de posse de bola da época) e encaçaparam enquanto durante a jogada inteira o comentarista furibundo reclamava da estupidez brasileira. Faltando três segundos, os brasileiros deram a saída, o tempo ia acabar, Marcel rifou a bola lá do meio da quadra... e ela caiu! Sorte, pura sorte. Os destaques daquela equipe foram Hélio Rubens e Ubiratan, que só entravam quando a coisa ia mal, já que tinham ambos mais de 35 anos e estavam se despedindo da seleção.

Em 1981, a Bandeirantes transmitiu o Sul-americano de basquete. O promissor locutor Galvão Bueno estava a cargo do microfone e, profissional como sempre, conseguia manter o interesse do espectador durante todo o tempo. Contou também como os brasileiros, após uma longa hegemonia, haviam perdido o título para os uruguaios no último torneio com histórias estranhíssimas, com gente puxando a tabela pela corda, segundo ele. Começou então o Brasil x Uruguai. O jogo foi ficando complicado, Galvão reclamando que o placar do primeiro tempo, ambos na casa dos trinta pontos, era placar de infantil, até que a certa hora, depois de mais um arremesso errado porque forçado e marcado do Oscar, ele se irritou e, não sendo ainda um ícone nacional, soltou o que hoje em dia não poderia falar: "O Oscar não arma, não marca e não arremessa. Jogo em que ele faz menos de trinta pontos o Brasil entra com um a menos".

E essa foi a história da seleção brasileira sob Oscar. Ele nunca foi bom em rebote, apesar de sua altura, 1,99m (um gigante para a sua época). Defendia mal e não armava. Era um formidável arremessador, mas justamente por isso tendia a concentrar o jogo brasileiro. Os adversários, cônscios de sua importância para o time, marcavam-no impiedosamente e, infelizmente, nosso grande ala não reagia bem sob pressão e começava a tentar arremessar mesmo bloqueado ou desequilibrado. Do mesmo mal padecia Marcel. Quanto mais o jogo pedia calma, sangue-frio e inteligência, mais eles tentavam forçar jogadas impossíveis.

O grande feito de Oscar (e Marcel) foi a vitória sobre os EUA vinte anos atrás. Eu vi o jogo e me lembro claramente, inclusive de à noite ir à Gafieira Voadora,encontrar os amigos e ficar comentando a improvável partida. O Brasil estava quase vinte pontos atrás. A reação começou quando um estadunidense enterrou uma bola e ainda se pendurou no aro, o que levou o juiz a anular a cesta. Essa atitude mostrava o que se passava na cabeça dos americanos na hora - o título já estava ganho, era só levar pra casa. Eles relaxaram na marcação e na armação, o Brasil foi diminuindo a diferença e Oscar e Marcel acertaram praticamente todos os arremessos de três pontos que tentaram. Não só isso, eles começaram a tentar as coisas mais estapafúrdias em quadra - e foi funcionando! Renato Brito Cunha era o comentarista e numa dessas ele simplesmente disse, "desisto de comentar, isso vai contra tudo que se deve fazer no basquete", ao falar sobre um contra-ataque em que Marcel saiu correndo sem marcação, viu que havia ultrapassado a linha de 3 pontos e, em vez de bandejar, DEU UM PASSO PARA TRÁS para chutar e marcar uma cesta de três.

Oscar, apesar de nem de longe ter a aversão a treinos ou o caráter duvidoso do futebolista, fez pela seleção brasileira o que Romário fez no Flamengo e no Vasco. Concentrou o jogo e sobrecarregou o time, por não dividir com ele os fundamentos defensivos e a armação. O Brasil está pagando até hoje. Os ídolos são importantes, mas os esportes coletivos, como diz o nome, são coletivos. Exigem que todo mundo participe inclusive dos momentos inglórios.

(Certa vez, na arquibancada do Maraca, no começo dos anos 80, conheci um senhor que tinha sido juiz de basquete. Perguntamos pra ele quem ele achava que tinha sido o maior basquetebolista brasileiro e ele disse que era o Algodão. Olhando agora na Wikipedia, começo a entender por quê. Ele foi TITULAR do time campeão mundial em 1959, AOS 44 ANOS DE IDADE, numa época em que os atletas duravam bem menos do que hoje. Também achei sintomático que haja um verbete para Oscar e não para Edson Bispo ou Hélio Rubens).

(Não devia também ser um barato o Brasil ser um país sub-sub-sub-desenvolvido na época, com indicadores econômicos e sociais a níveis africanos e em 1963 ser bicampeão mundial nos dois esportes mais populares do mundo?)

agosto 22, 2007

Chega uma hora na vida em que o futuro parece nebuloso. O chão some sob nossos pés. Tudo parece difícil e confuso, nossas certezas todas desaparecem, duvidamos de tudo que fizemos ou queremos fazer. Geralmente esta hora chega uns dois segundos depois do médico dar uma palmada na gente. Quer dizer, médico não, não sei, os caras tão todos mascarados pra não serem reconhecidos, a gente nunca sabe, né? Mas de qualquer forma é nessa hora em que o futuro começa a nos parecer tremendamente nebuloso e inseguro. Já nesse momento começa a busca. Precisamos descobrir quem somos. Dão-nos um nome, mas em que nos ajuda um nome a descobrir quem somos? Pensando bem, se você por exemplo se chamar Jabotecler, ajuda pacas. Não tem como você não descobrir quem é. Não importa em que hora, em que dia, mas em um momento você vai estar andando pela rua e vai se dar conta. "Meu Deus, eu sou o Jabotecler". Isso é uma coisa que define uma pessoa. Jabotecler. Ninguém aí se chama Jabotecler, certo? Claro que não. Se se chamasse, não estaria aqui. Certamente estaria em algum lugar transcendental, cercado de discípulos doidos para aprender como o mestre descobriu seu lugar no Universo. É simples quando você se chama Jabotecler, afinal no Universo certamente só há lugar para um Jabotecler. Mas e se você se chama, digamos, Paulo? Quantos Paulo outros não haverá no Universo? Ou Aline e Ailime. Se bem que Aline e Ailime parecem também só estarem destinadas a um papel no Universo, mas isso é outro papo e outro papel. Se você não tiver que se preocupar com outras coisas que possam parecer mais importantes, tais como ter algo o que comer, o que vestir ou se batizar ou não o seu filho de Jabotecler Júnior, você começa a se preocupar com essas coisas metafísicas. Destino, beleza, arte, amor, paixão, sexo, morte. E onde encontrar as respostas? Infelizmente, o Jabotecler já tá cheio de discípulos e não tá aceitando mais, então tentamos usar o Universo para nos dizer o que fazer. Entrar em sintonia com o Cosmo. Usar as nossas percepções místicas. Eu tenho um primo adolescente que é capaz de ver o futuro. Ele é capaz de entrar num lugar e ter uma visão do que vai acontecer ali dentro de uns dez, quinze minutos. Toda vez que ia começar a aula de aeróbica na academia dele, ele ia dez minutos antes para o vestiário feminino. Até que um dia o Jabotecler o levou com ele para usar seus dons para fins mais nobres. Outras pessoas têm percepções diferentes. São esses que a gente procura pra nos darem uma ajuda, nos dizerem o que esperar do futuro, do Destino. Não nos satisfaz viver cada dia, precisamos que o próximo dê sentido a tudo, nos traga o que desejamos. Precisamos conhecer o futuro. Eu fiz o circuito todo. Fui a um tarólogo. Ele tirou o arcano XII, o Enforcado. Tirou depois o arcano VI, o Enamorado. Depois tirou o arcano IV, o Imperador. Deu XXII. Estourou e a banca ficou com tudo. Procurei depois um vidente, mas não achei nenhum em casa. Parece que estavam todos nos vestiários da convenção de professoras de aeróbica. Tentei finalmente uma moça que lia a sorte numa xícara de chá. Nunca esquecerei suas proféticas palavras - " Instruções - aqueça a água e deixe este saquinho em molho durante alguns minutos". É claro que a água era a minha vida e o saquinho era eu. Eu devia aquecer o meu coração. Dar lugar para mais um. Porque, afinal, dizem que o Inferno são os outros, mas não é isso. O futuro é que são os outros. Porque quando você olha pela rua, cada pessoa, cada rosto, cada tristeza, cada alegria que você vê, é um reflexo, um espelho. De você mesmo. Um momento que você vai passar, um desamor, uma grande paixão, uma conquista, um triunfo, um fracasso. Todos nós passamos por isso. Todos nós vamos ter pelo menos um pouco de cada uma dessas coisas. E, durante pelo menos um momento, vamos ser aquela pessoa que estamos vendo atravessar a rua. Aquele sujeito bonito, aquela moça bem-vestida porém carrancuda. Nós nunca vemos o nosso rosto, podemos apenas ver o dos outros. É como a nossa vida, o nosso tempo. Nós nunca vemos o nosso futuro, embora todo mundo possa vê-lo. Possa vê-lo em nossas crenças, nossas atitudes, nossas decisões, nossos amores. Somos anônimos na multidão, mas temos nosso coração e ele está refletido em nossos rostos. A não ser o Jabotecler, que nunca vai ser anônimo em lugar nenhum. Ele está no meio de nós. E nós, nós estamos no meio de todos. A vida é grande demais para ser apreendida num futuro. Ela tem um presente e um passado. Nós não precisamos vê-los todos juntos. Não precisamos sabê-los. Precisamos apenas vivê-los. Eu acho que é isso. Não precisamos de mais nada. Só isso. Aquecer a água e deixar o saquinho de molho. Eu jamais poderia imaginar tanta sabedoria numa xícara de chá. Deve ser a tal da sincronicidade. Aquela que o Jung inventou. Jung. Que nome esse, também? Deve ser o Jabotecler da Renânia. Ele tem sorte, tem seu nome. Nós? Nós temos nossos rostos e nossa vida.

agosto 21, 2007

A Tatuagem de Letícia


Bourbon Street Fest - Aterro do Flamengo - 19 ago

Oração



Eu andarei vestido e armado
Com as armas de São Jorge
Para que meus inimigos, tendo pés
Não me alcancem
Tendo mãos não me peguem
Tendo olhos não me vejam
E nem em pensamentos
Possam me fazer mal.


Armas de fogo
O meu corpo
Não alcançarão

Facas e lanças se quebrem
Sem o meu corpo tocar
Cordas e correntes se arrebentem
Sem o meu corpo amarrar.

Glorioso São Jorge, em nome de Deus
Estenda-me o seu escudo
E as suas poderosas armas
Defendendo-me com a sua força
E com a sua grandeza
E que debaixo das patas de seu fiel ginete
Meus inimigos fiquem humildes
E submissos a vós

Assim seja com o poder de Deus, de Jesus
E da falange do Divino Espírito Santo
São Jorge Rogai por nós

(Oração a São Jorge, na qual Jorge Ben (ainda não jor) se inspirou para escrever Jorge de Capadócia)
Foto tirada na Bourbon Street Fest no Aterro do Flamengo

julho 22, 2007

Baywatch


Sim, é verdade, isso aí É a Avenida Atlântica!!!! A rocha atrás do mastro é a Pedra do Inhangá, que foi cortada e hoje acaba ali na Cardeal Arcoverde - antigamente vinha até a praia. Ou seja, ali é mais ou menos a altura de onde hoje fica o Copacabana Palace. O limite entre Leme e Copacabana era essa Pedra e não a Princesa Isabel.
A pergunta que não quer calar: como o salva-vidas descia pra salvar as pessoas? Descendo ousadamente de maneira radicaaaaaal pelo fio? Ou saltava e usava o guarda-sol como pára-quedas (apesar dos Mythbusters garantirem que isso não funcionaria?)

Aconteceu Comigo

Estou caminhando na cidade, vejo uma sapataria em liquidação e um sapato do tipo que a minha irmã gosta, resolvo comprar pra dar de presente. Pago com cheque. O sujeito pede identidade. Eu mostro a minha, do Tribunal, com as armas da República e uma imensa faixa verde-amarela onde se lê em escandalosas maiúsculas, JUSTIÇA. Depois, carimba o verso do cheque e pede endereço, telefone, RG, CPF, endereço do trabalho e telefone do trabalho. Depois, ostensivamente, liga para um serviço de proteção ao crédito e consulta meu CPF. Finalmente libera a venda. Algo já irritado, resolvo exigir a notinha. O vendedor pergunta "pra quê". Pra não dizer que é porque resolvi implicar, respondo que é para o caso de uma eventual troca, afinal o sapato não é pra mim. O sujeito, abrindo os braços e bem mais caloroso, retruca sorrindo, "ora, não precisa, pode trazer na confiança"... pode confiar.

julho 21, 2007

Soneto das Metamorfoses

De Carlos Pena Filho. Leia a obra-prima dele, A Solidão e sua Porta, aqui, em uma nova janela

Carolina, a cansada, fez-se espera
e nunca se entregou ao mar antigo.
Não por temor ao mar, mas ao perigo
de com ela incendiar-se a primavera.


Carolina, a cansada que então era,
despiu, humildemente, as vestes pretas
e incendiou navios e corvetas
já cansada, por fim, de tanta espera.


E cinza fez-se. E teve o corpo implume
escandalosamente penetrado
de imprevistos azuis e claro lume.


Foi quando se lembrou de ser esquife:
abandonou seu corpo incendiado
e adormeceu nas brumas do Recife.

O Quarto Vértice

Escrevi esta peça em 1990, achava o conceito originalíssimo. Hoje tem até um desenho no Adult Swim, o segmento adulto do Cartoon Network, com esse tema, com dois dos mesmos personagens desse comecinho que eu postei em papéis de destaque. Lááááá em baixo eu falo quem são.

Paulo está entre o promotor, o advogado e o Juiz esperando seu julgamento por tráfico de denelina, observado por clones, Gandhi entre eles. Todos os clones, Gandhi inclusive, diferenciam-se dos que não são pelo uso de máscaras caricaturais. O advogado, o promotor, o Juiz e Paulo são humanos normais.

Advogado
(LEVANTANDO O ROSTO DE PAULO PELOS CABELOS) Vejam sua face lisa. A vida não o marcou, por que deveríamos nós fazê-lo? (AO JUIZ) Perdoai-o, ele não sabe o que faz.

promotor
Um menino mimado que mantiveram à margem da vida - isto é seu rosto liso. Que o tempo e a experiência façam dele um homem!

advogado
Quando jovens nos julgamos imortais, sem necessidade de arrependimentos...

promotor
É Justiça isso? Quebrar a Lei é querer ser punido. Um jovem tem mais tempo para pagar seus pecados do que um velho. Isto é justo!

advogado
Justo chamamos a um traje que nos tolhe os movimentos e rasga-se a uma ação mais brusca...

juiz
Chega! Metáforas vis, jogos de palavras, ardis! (CAMINHA ATÉ PAULO) A juventude tem muito tempo por matar, é normal que recorra a artifícios como drogas. (PEGA SEU ROSTO E O LEVANTA) És original. Sem passado. Livre. Compreendo tua ansiedade, tantos caminhos! (BEIJA-O)

promotor
E assim liberta-se aquele que deveria aprender...

advogado
Muito ele já aprendeu com nossos discursos...

juiz
Inúteis (SAI).

Saem todos, deixando Paulo sózinho. Entra Gandhi

gandhi
Você não está preso.

Paulo
Sempre o estamos a alguma coisa. À vida, a um amor, ao trabalho.

gandhi
Quem é pego vai preso. É a Lei.

paulo
Ela me soltou.

gandhi
Não falamos da mesma lei. (APROXIMA-SE AMEAÇADORAMENTE) O que você fez? Aproveitou o nome de seu pai? Aproveitou seu dinheiro? É amigo do Juiz? Ou... (SINISTRO) entregou-nos?

paulo
Desprezaram-me.

gandhi
Talvez a você, mas e seu crime? Tráfico de influências? Acordo com o promotor? Não se pode chamar a atenção para nós.

paulo
Você não é do tipo discreto.

gandhi
Cale-se. Você não devia ter feito o que fez. Se foi pego, tem que ser preso. Errou, tem que pagar.

paulo
Não é um conceito um tanto judaico-cristão para Gandhi?

gandhi
(FURIOSO) Eu não sou Gandhi! (TIRA O CHAPÉU) Eu tenho cabelos! Não tenho bigode! Gosto de sexo e violência! Não me fale assim!

paulo
Você está chamando atenção...

gandhi
(LARGANDO PAULO) O chefe ainda vai querer falar com você...

paulo
Você não é o George Raft mesmo não?
Gandhi acerta Paulo súbita e violentamente. Paulo cai.

gandhi
Medite sobre convivência pacífica conosco. (SAI)

paulo
"Às vezes me parece que meu sangue jorra abundantemente
Como uma fonte em espasmos rítmicos
Ouço-o bem correr com um longo murmúrio
Mas em vão me tateio em busca da ferida (...)"

Um clone entra e fica rindo com ar de louco no canto.

Paulo
O que foi? Que que você tá olhando?

clone
Teus pais treparam, né?

paulo
(LEVANTANDO-SE PARA PERTO DO CLONE) Que que você tá querendo, aberração da natureza?

clone
Não sou aberração da natureza. Sou Rui Barbosa. Você é que não é ninguém.

paulo
Eu me chamo Paulo. Você por acaso tem nome?

clone
Não, mas tenho uma mensagem pra você.

paulo
George?

clone
Nome não. Mensagem.

paulo
É de George?

clone
Não, é sua, é pra você.

paulo
(JÁ IRRITADO) Quem mandou você? Quem mandou a mensagem?

clone
Seu pai.

paulo
Qual é a mensagem?

clone
"Vinde a mim".

paulo
E onde ele está?

clone
À beira da morte.

paulo
Onde?

clone
Eu não sei de onde vim... nem para onde vou...

Paulo larga o clone.

clone
O mesmo lugar de sempre. Não há muitos lugares para onde ele possa ir...

paulo
Meu pai sempre foi conservador...

clone
(SORRINDO ENIGMATICAMENTE) E espera você... (VAI SAINDO) espera...

paulo
Tanto tempo... o que um pai pode dizer a seu filho no dia de sua libertação? (SAI)

Entram Patton e Gandhi. Patton tem a máscara maquiada como se fosse um rosto.

gandhi
O garoto foi pego.

patton
Todos são pegos um dia ou outro.

gandhi
Ele não foi preso.

patton
Não? Deixaram nas ruas aquele garoto de maus hábitos e mau comportamento, que pragueja e despreza seus semelhantes? Por quê?

gandhi
O pai dele tem certa influência.


patton
O pai dele é um velho louco. Prefere ver o filho derrotado a confessar a sua derrota.

gandhi
E o que devemos fazer?

patton
Fazer? (AGRESSIVO) Você ainda pergunta o que fazer?

gandhi
Suas ordens são não agir sem ordens.

patton
Mate o juiz, então. Os advogados e o júri. Os policiais que o prenderam. E ele.

gandhi
Matar todos?

patton
Se você não consegue ter um único momento de iniciativa, então deve se sujeitar aos caprichos do líder.

gandhi
Nós não vamos conseguir fazer tudo isso...

patton
Por quê? Não confia em si mesmo? Não sabe como fazer o que lhe cabe? É assim que se talham os homens, clone covarde! Qual o seu nome?

gandhi
Eu não tenho nome.

patton
Pois o meu é George. George Patton. Eu faço meu próprio nome. Sem denelina, sem êxtases e visões. Eu vivo com o corpo do guerreiro imortal. Eu dou as ordens e você obedece. Se não fosse eu, você obedeceria a outro. Chega. Teve a chance de fazer o mais fácil, agora quero todas as mortes. Uma por uma. Iniciativa não é o seu forte, quem sabe ação. Talvez nela você se descubra.
gandhi
Mas chefe...

patton
(SEGURANDO A CABEÇA DE GANDHI ENTRE AS MÃOS) Nos últimos três mil anos vaguei sob diversas formas nestas planícies. Tenho a vontade de cem homens expressa em túmulos reverenciados em todas as terras. Não me importa um garotão mimado nem um clone viciado em denelina. (CARINHOSO) Cumpra as ordens. Enlouqueça, experimente o êxtase da paixão destruidora. Todo anjo é terrível. Você é o meu mensageiro. Diga que George tem recado para todos. (LARGANDO-O) Vá. Liberto teu corpo para que me agrade.

gandhi
Eu tentarei ser digno, chefe.

patton
Seus atos não refletem verdade em suas palavras.

Gandhi sai. Patton fica sozinho em cena.

patton
"... traz em si tão belas criaturas..." (SAI)


Paulo fica olhando, parado, em cena. Dois clones do seu pai entram, postando-se como arautos.

clone 1
Sangue do meu sangue!

clone 2
Carne da minha carne!

Entra um terceiro clone, empurrando o pai de Paulo, inválido, deitado dentro de um pulmão de aço
pai
Sabe o que dizem por aí? Não soube nem criar meu filho, como pude tentar criar outras pessoas? (TOM) Como pensava saber alguma coisa, Paulo? Se nem com teu pai quis aprender algo? (TOM) E nem se deram ao trabalho de prendê-lo... simplesmente desistiram de você! Não percebe, Paulo, como todos estão desistindo de você?

paulo
Pai... é isso que é tão importante que você quer até me rever?

pai
Nós somos pai e filho, Paulo... há tanto que não nos vemos... como começar..? Talvez partindo do geral para o específico. Veja nossa sociedade... somos a cultura mais avançada do planeta... no entanto, se um de nós for deixado numa ilha deserta, provavelmente morreria de fome, frio ou sede. Você sabe cozinhar, Paulo?

paulo
Eu não morro de fome.

pai
Não. Usa o dinheiro com a venda da denelina.

paulo
E você reclama do quê? Você ajudou a povoar o mundo com esses pobres fantasmas. Corpos que já fizeram o que tinham que fazer, tentando redescobrir o mundo porque em vez de nome têm uma sequência artificial de DNA. Deixe-os ao menos pensarem que podem ser tão grandes quanto seus ídolos.

pai
Suas matrizes, Paulo. Suas matrizes. Eles deveriam imitar o comportamento das matrizes, não idolatrá-las.

PAULO
Não podem ter ídolos, nome nem uma vida normal porque devem ser quem decidiram que eles fossem. Com a responsabilidade de ultrapassar seus criadores. Como vocês queriam que isso funcionasse?

pai
Parecia uma boa idéia. Criar clones a partir do DNA recuperado dos grandes gênios da humanidade. Uma segunda chance para os incompreendidos. Se lhes impúnhamos responsabilidade, qual o problema? Pais sempre agiram assim com seus filhos.

paulo
E por isso paramos de nos falar. E vocês resolveram repetir esse erro em escala de laboratório.
pai
Este é o nosso mundo. Por que deixar que a natureza insistisse no acaso e em povoá-lo com mentes insignificantes e corpos decadentes? O erro talvez tenham sido as matrizes. Escolhemos as exceções. Newton era celibatário. Freud era neurótico. Da Vinci e Michelangelo, homossexuais, Marx um fracassado. Devíamos saber que os gênios são o erro.

paulo
Era isso que você queria me dizer?

pai
Quieto, Paulo. Eu, vivendo neste aparelho. Veja as maravilhas da tecnologia. Falavam de mim, "uma mente brilhante, pena que seu corpo esteja morrendo". Agora, meu corpo e minha mente vivem. Separados, sim, todos vivem assim agora. (A UM CLONE) Ponha-me em posição explanatória, um.

O clone movimenta a maca do pai.

pai
Obrigado. Veja estas figuras débeis, estes corpos frágeis. Onde está a determinação que me levou a lutar tanto, a me superar? Por que eles se contentam em ficar tomando contam de mim?

clone
(ASSUSTADO) A vida é incerta, mestre...

paulo
Talvez lhes falte exatamente denelina.

pai
Sempre os mesmos erros. Em vez de tentarmos construir um futuro, insistimos em reconstruir um passado. Se nossos gênios fossem realmente os gigantes que achamos que foram, a humanidade seria muito mais evoluída! A denelina não resolve nada. Uma droga que estimula a fabricação de neurotransmissores genéticos. Que traria à tona a informação cerebral contida nos gens. Tolice.

paulo
Os clones não acham isso.

pai
Se eles soubessem de alguma coisa, não seriam o fracasso que são. O uso prolongado da denelina apenas apaga toda a memória do indivíduo e o deixa à mercê de seus instintos animais! Toda volta ao passado é uma volta ao bestialismo. Inocência é caçar, é matar sem remorso, é morrer sem medo. Eu temo a morte, a verdade é essa. E me cerco de clones. Sou todos eles.

paulo
E parte de você em mim.

pai
O que nos traz ao motivo pelo qual o chamei. Denelina e passado, matrizes e estes descerebrados rindo. Pai e filho. Chegou a hora de você mudar tudo isso.

paulo
Não estou interessado, pai. Estou bem. Tenho a minha vida, não queira me empurrar a sua.

pai
A minha? Com tanto de minha vida já circulando em torno de nós? Você nunca foi muito perspicaz. Você não sabe porquê, mas sua simples existência alivia as dores da minha morte próxima. Mas você não é o que eu queria que fosse.

paulo
Ambos o sabemos há anos.

pai
Os pais sempre se enganam a respeito dos filhos. Por isso pensei que tal não aconteceria entre nós.

paulo
O que você quer dizer com isso?

pai
As primeiras matrizes começavam a não dar certo. Meus colegas falavam em redimi-los. Sublimando seus desejos, eles alcançariam seus intentos. E assim comecei a procurar uma matriz que se encaixasse nesses requisitos.

paulo
(APROXIMANDO-SE ASSUSTADO) O que você quer dizer, pai?

Os clones afastam-no do pai.

clone
Contenham-se, vocês parentes.

pai
Veja o respeito que têm por mim. Não. A matriz que eu procurava devia resolver todos esses conflitos. Comecei a pesquisar. O que tínhamos, pensei, da Antiguidade? Que cadáveres e restos mortais de homens que criaram a razão?
paulo
Esses conceitos nunca funcionaram! Você mesmo acabou de dizer!

clone
Nenhum dos dois deve se exaltar! Aqui é local de silêncio.

clone 2
Repouso e meditação.

pai
De tanto pesquisar, acabei encontrando um dossiê, daqueles perdidos há muito tempo. Uma pesquisa antiga, da década de 80. Dataram um artefato antigo. Foi tudo feito errado. Não contavam na época com o efeito Renitz. Esqueceram os efeitos da radiação transmutadora esperada num evento de tal magnitude. Em suma, a pesquisa dizia que o artefato não era da Antiguidade. Com técnicas atuais, cheguei à conclusão que era. Acabei conseguindo uma amostra do tecido.

paulo
(DESESPERADO, AJOELHANDO-SE EM FRENTE À MACA) Pai! O que você está falando? Que tecido? Que tecido era este?

clone
A trama do Destino.

pai
Marcas de sangue de uma teórica transfiguração. O Santo Sudário. A mortalha...


clone
... de Jesus...

paulo
Cristo!

pai
E em nome de Deus. Um clone redentor. (AOS CLONES) Levantem-me, quero encará-lo!

Os clones levantam o pai.

pai
Você era importante demais. Por isso resolvi criá-lo como filho, o filho que eu jamais poderia gerar!


clone
Ele não é seu filho?

clone 2
(DESESPERADO) Nosso filho? O que foi feito de nosso filho?

pai
(ALHEIO AOS CLONES) Por isso eu não falava com você. Você devia falar comigo.

paulo
Pai... eu sou um... clone?

clone 3
Como seria dormir com sua mãe?

pai
Um clone? Você tem nome. Você foi criado a partir de receptores e tecidos humanos. Você é meu filho.

paulo
O que quer fazer de mim, afinal?

pai
Sou estéril. Estou velho. Impotente. Veja meus clones, a idade afetou o processo.

clone
Eu cozinho.

clone 2
Eu cuido do orçamento.

clone 3
Enfermeiro. Cuido da casa e do corpo original.

pai
Mostre-me o futuro, meu filho. Você não é apenas mais uma cópia. Faça algo por eles. Esta era minha esperança. Não deixe que nossas melhores criações se percam.

paulo
Pai... isto é loucura. Eu sequer sou humano. Você e minha mãe sempre foram dois estranhos. O que você acha que eu posso fazer?


pai
Mais do que vender drogas. (AOS CLONES) Ponham-no para fora! Ele sempre reclamou que eu queria influenciá-lo. Não vou lhe dizer como agir, então. Não vou lhe dizer uma palavra.

paulo
Pai, isto é loucura!

O clone 1 e o clone 2 agarram Paulo que se debate. O clone 3 vai levando o pai embora.

paulo
Pai, o que você fez a seu filho? O que você fez a todos nós?

clone 1
Obedeça seu pai!

clone 2
Ouça seu pai!

Depois que o pai foi embora, os clones largam Paulo e vão saindo. Paulo cai ajoelhado, arrasado. Clones começam a passar. Um manco vendendo balas. Um, amedrontado, fugindo se escondendo pelos cantos. Outro, carregando pastas como um boy. Entram Napoleão - um clone que usa várias máscaras sobre o rosto, levantadas, deixando o seu próprio rosto à mostra, normalmente. Vez por outra, põe uma máscara - segurando uma bebida e Heloísa, abraçada a ele.

Os clones de Gandhi e Cristo também aparecem no desenho como personagens de destaque, Gandhi em particular.
A maior parte das pessoas só conhece Gandhi da imagem idealizada do filme de Richard Attenborough, que tentou emular David Lean. Pouca gente sabe que o garoto era hiperativo e o casaram com uma guriazinha aos quinze anos. O moleque adorou aquele negócio chamado trepar e passava o dia inteiro fazendo-o, com o rendimento na escola desabando. Seu pai adoeceu e, quando ele morreu, Gandhi estava na cama com a esposa adolescente e carregou a culpa por isso a vida inteira, nunca se perdoando por não estar ao lado do pai na hora da visita da ceifadora. Isso deve explicar parte da abstinência dele em sua fase de agitador, político e líder, não?

P. S.: Segundo Jung, as coincidências não existem: a chave preu subir essa postagem é "maya". Falo tanto em Gandhi e o computador me lembra que tudo é ilusão.